Foi com alarde que, em setembro de 2020, se noticiou a resolução de Paulo Mendes da Rocha (1928-2021), àquela altura maior arquiteto brasileiro vivo, de deixar seu acervo sob a guarda de uma instituição estrangeira privada. Justo ele, que sempre defendeu o que é público.
A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde o mestre havia lecionado – e que tinha a expectativa de receber a coleção –, manifestou, em nota, “grande pesar”.
As críticas lamentavam tanto a expatriação do material como o destino: a Casa da Arquitectura, inaugurada apenas três anos antes, ainda por cima em Portugal. Como se o gesto de enviar tamanho tesouro para lá reproduzisse relações coloniais de subserviência.
“Entendo o sentimento. Mas Paulo sabia o que estava fazendo, não decidiu nada por impulso, pensou muito sobre isso”, diz Nuno Sampaio, diretor-executivo da Casa, ao NeoFeed.
Em dezembro de 2020, um total de 6 mil fotografias analógicas, 500 publicações, 90 caixas de documentação e nove maquetes, além de mais de 15 mil documentos digitais, rumaria a Matosinhos, pequena cidade litorânea próxima ao Porto.
Agora, a Casa exibe, pela primeira vez, um recorte desse montante em duas exposições, que seguem em cartaz até fevereiro de 2024 e marcam o início do ano dedicado a Paulo Mendes na Rocha na agenda do museu.
A primeira mostra chama-se Geografias Construídas, com 12 projetos-âncora detalhados e mais cerca de 300 itens, entre fotos, maquetes e desenhos originais. Na segunda, Para Além do Desenho – Conversando com Paulo Mendes da Rocha, um vídeo de quase uma hora compila falas do arquiteto em dez ocasiões – desde o programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2013, até seu discurso de agradecimento pela medalha do Royal Institute of British Architects (RIBA), em 2017.
Decisão calculada
Mendes da Rocha estreitou laços com Portugal quando foi convidado pelo governo do país a conceber a nova sede do Museu Nacional dos Coches, inaugurado em 2015, em Lisboa. Nesse trabalho, aproximou-se do colega Nuno Sampaio, envolvido na equipe local do empreendimento. “Eu já trabalhava na idealização da Casa da Arquitectura e comecei a conversar com ele sobre o destino de seu acervo”, conta Sampaio.
O primeiro passo se deu ainda em 2015, com a doação do projeto desse mesmo museu. Em 2017, encaminharam-se mais cinco. Até que, em dezembro de 2019, o arquiteto assinou o contrato referente ao restante do arquivo pessoal. “Creio que ele já sabia de sua doença”, diz Sampaio.
“Ele falava em não deixar o problema do acervo para os filhos resolverem.” Paulo Mendes da Rocha faleceu em 2021, em decorrência de um câncer de pulmão, no mesmo 23 de maio em que, seis anos antes, o Museu dos Coches abriria ao público.
Obra monumental
Com a montagem das duas primeiras exposições, a Casa da Arquitectura honra o compromisso de dar visibilidade e disponibilizar o acesso online de pesquisadores à produção do arquiteto.
A agenda prevê, em agosto, atividades em São Paulo – a programação, a ser divulgada em breve, deve conter visitas a alguns dos 12 projetos-âncora de Geografias Construídas, como o Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia (MuBE), a requalificação da Pinacoteca, a cobertura da Praça do Patriarca e o Sesc 24 de Maio.
Essas obras confirmam algumas de suas máximas, como “o conceito de espaço presume o público, não existe espaço privado” e “o papel da arquitetura é amparar a imprevisibilidade da vida”.
A respeito da primeira, vale lembrar que até mesmo ao desenhar sua própria casa Mendes da Rocha priorizou as áreas de convivência e optou, nos quartos e banheiros, por paredes que não vão até o teto.
Isso “explicita o seu diálogo com as casas de favela, ou com as casas populares de cidades pequenas e de comunidades rurais, onde as coberturas com telha vã e sem forro produzem o mesmo efeito de socialização da vida nos ambientes domésticos”, escreve o arquiteto Guilherme Wisnik no catálogo da exibição.
O Edifício Guaimbê, no coração dos Jardins, bairro nobre de São Paulo, exemplifica como o autor pensava a relação com a rua. Longe de lembrar uma fortificação cheia de muros e grades, a entrada se integra à calçada da rua Haddock Lobo por meio do paisagismo.
O acesso livre de barreiras aparece também no desenho original do MuBE, na mesma região paulistana, e no Sesc 24 de Maio, seu último projeto, encravado no centro da capital paulista.
No MuBE, porém, prevaleceu a cultura do cercamento, e a bela marquise de concreto que liga duas ruas localizadas em planos diferentes – exemplo literal de geografia construída, título da exposição portuguesa – acabou rodeada por grades.
Felizmente, nada que chegue a cancelar a segunda máxima: ali, todos os sábados um grupo se reúne para praticar ioga gratuitamente. Enquanto isso, no Sesc 24 de Maio, crianças brincam no espelho d’água do 11º andar, e, na Pinacoteca, visitantes se fotografam nas passarelas que atravessam o átrio. Acomodada entre concreto, tijolo e metal, eis a tal imprevisibilidade da vida.