- Paulo Mendes da Rocha: Você fuma?
- Eu: Não. Tenho asma. Mas pode fumar, fique à vontade. Você já queria pedir um cigarrinho pra mim, né?
- Paulo Mendes da Rocha: Não... assim vou matar você. Mas uma conversa boa tem que ter um cigarro.

- Eu: Você fuma?
- Paulo Mendes da Rocha: Já não fumo mais. Não posso. Fumei desde os 14 anos até os 80. Já fiz 90. Nasci em 1928. Uma das receitas é esse cigarro aí.

- Eu: Mas dizem que é o contrário, não?
- Paulo Mendes da Rocha: Tudo o que dá prazer faz bem. Mas o médico falou que daqui para frente é melhor parar porque o pulmão não aguenta. (Paulo pede para Eliane, sua assistente, providenciar um cigarro. E fuma ao final da entrevista). Mas se acontece um momento assim alegre, a visita de um amigo, aí tudo bem. Se você fuma um cigarro por semana, digamos, é mesma coisa que nada.

O diálogo divertido que deu início à nossa conversa de duas horas aconteceu no escritório do gigante da arquitetura brasileira em junho de 2019, nove meses antes do início da pandemia da Covid-19 no Brasil.

Considerado o último dos gênios do modernismo, Paulo Mendes da Rocha ganhou em 2006 o Pritzker, o maior prêmio internacional da arquitetura. O arquiteto e urbanista morreu neste domingo 23. Ele estava internado havia duas semanas com pneumonia. Tinha câncer no pulmão, segundo publicou o jornal Folha de S.Paulo.

Mendes da Rocha era capixaba e estava em atividade desde 1955. A maior parte de sua obra está concentrada em São Paulo. Pai do MuBE, o Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia, e responsável pela intervenção arquitetônica na Pinacoteca do Estado, o arquiteto foi descoberto internacionalmente décadas depois de se notabilizar no Brasil.

Depois do Pritzker, Paulo Mendes da Rocha recebeu em 2016 o Leão de Ouro da Bienal de Veneza e Prêmio Imperial do Japão. Em 2017, ganhou a medalha de ouro do Riba, o Real Instituto de Arquitetos Britânicos. Recentemente, em 4 de maio, foi anunciado vencedor da medalha de ouro da União Internacional de Arquitetos. Suas relações com Portugal eram sólidas.

Seis meses antes de morrer, ele doou seu acervo de 8.800 itens para uma instituição portuguesa durante a pandemia. Todo o seu acervo, entre 6.300 desenhos feitos à mão, 3.000 fotografias e slides, um conjunto de maquetes e 300 publicações, passou a ser integrado ao acervo da Casa da Arquitectura em setembro de 2020. O total de itens corresponde a mais de 320 projetos.

À época houve debate sobre a doação. Alguns se surpreenderam. Esperava-se que o acervo fosse doado para a USP (Universidade de São Paulo), onde Paulo Mendes da Rocha era professor desde 1961. “Antes de mais nada, gostaria que vissem a doação que fiz como uma manifestação da liberdade que tenho de fazer o que eu quiser”, disse à Folha de S. Paulo.

Em 1969, já professor da USP, Paulo Mendes da Rocha foi cassado, juntamente com Vilanova Artigas e outros 64 professores, pelo governo militar. Só retomou as atividades como professor, após a anistia, em 1980. Deu aulas na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) até 1998, quando se aposentou aos 70 anos.

Desde os anos 1970, seu escritório era no prédio do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), no centro de São Paulo. E ali ele trabalhou até pouco antes da pandemia. Sua rotina foi interrompida pelo isolamento social. Até então, ele frequentava semanalmente o amplo e arejado escritório onde nos encontramos em 2019. “Cortinas? Deus me livre. Junta muita poeira”, comentou comigo, quando cheguei.

Seus projetos se mantinham em plena atividade. “Estou trabalhando, cheio de coisa para fazer. Já há algum tempo, a técnica não se desenha mais. Tem computador. Trabalho com três escritórios, ex-alunos, que têm o maquinário todo”, detalhou. “E, neste espaço, nós viemos aqui, conversamos com engenheiros, acertamos tudo, fazemos modelos. E eu vou até um dos escritórios e desenvolvemos os projetos lá.”

Mais do que um arquiteto e urbanista, Paulo Mendes da Rocha era um pensador. Suas opiniões sobre preservação de monumentos históricos e a memória tinham um brilho à frente do tempo. “Preservar é um ato político. Preserva-se ou não. Significa dizer que memória é a lembrança do que você quiser ter da coisa. É uma decisão política”, me disse ele. “A memória não existe em si. Ela é construída.”

Discutíamos sobe o incêndio na catedral Notre Dame de Paris, pensando também na destruição do Museu Nacional, que pegou fogo tempos antes. Sobre o Brasil, ele não quis falar muito. Parecia decepcionado. Mas discorreu brilhantemente sobre a memória e o que faria com a Notre Dame, se pudesse decidir como devolvê-la ao público. “Não podemos esconder a história e fazer de conta que não houve nada”, resumiu.

Mendes da Rocha disse à época que deixaria a catedral de Paris com as marcas do incêndio, a céu aberto. “Apenas cuidaria para não deteriorar mais. Imagine o sol da tarde refletido lá dentro? O fogo pôs a luz para dentro da catedral definitivamente. O fogo é a formação da consciência e linguagem”, disse, sentado à sua mesa.

“Deve estar lindo lá dentro. Os vitrais devem estar coloridos como nunca estiveram. O sol reflete no altar. É essa a memória nova que queremos ter agora. É uma deliciosa fantasia da construção como espetáculo permanente. Depois do incêndio, a catedral se iluminou.”

Minha ideia fixa, desde o início da entrevista, era que Mendes da Rocha desenhasse intervenções em um croqui improvisado sobre uma imagem da Notre Dame destruída. Levei prints de imagens para que pudesse publicar na revista Robb Report Brasil, com a sua assinatura. Depois de duas horas, ainda insisti. Ele sorriu e disse calmamente:

“Eu fiz o desenho que você queria. É o que a arquitetura chama de desenho. Desenhar é uma ideia. Vem de desígnio”, explicou. “O que se faz depois são instrumentos de comunicação para construir o projeto. O desenho não é o que está no papel. O desenho é o que está na sua mente. Você não desenha para ver como é, mas para o outro ver aquilo que você desenhou mentalmente.”

Sorri resignada e eufórica com a beleza de suas palavras, e perguntei como ele se sentia sendo o último dos modernistas. “Quem te disse que sou o último?”, perguntou. “Não existe a ideia de moderno como um momento, ou um estilo. Estamos condenados a ser modernos”.

Paulo Mendes da Rocha também não quis avaliar o seu legado. “Eu nunca esperei nascer. Nem você. Somos acidentes da natureza humana. Não posso avaliar o meu legado. São os outros que avaliam. Ninguém faz nada para si. É sempre para os outros.”

- Eu: Como é ter 90 anos?
- Paulo Mendes da Rocha: Eu não sei. Nunca tinha tido antes. Você nunca tem nada. Você é.

- Eu: Nessa perspectiva dos 90, como você vê vida e morte?
- Paulo Mendes da Rocha: Vida e morte são uma coisa só. Se não existisse a morte, não poderia existir a vida. A vida é o que há, antes que você morra. Se você morrer, não há mais nada. Nenhum de nós pode saber o que é a morte. Pode sentir a falta do outro. Pode provocar a morte do outro. Inclusive a sua própria morte você pode provocar.

- Eu: Sim.
- Paulo Mendes da Rocha: Imagine se eu tivesse pensado em me matar, mas depois que você telefonou eu teria que esperar primeiro para conversar com você. Se tivesse esse plano, pensaria: vou conversar primeiro com essa Gisele.

- Eu: (risos).
- Paulo Mendes da Rocha: Até diante da morte temos uma grande liberdade. Não se pode saber o que é a morte. A morte simplesmente não é. Ou seja. Não existe a morte. Só existe a vida.

Que sua memória seja viva e dinâmica, como ele defendia em seus desenhos, no papel e nas ideias.

Gisele Vitória é jornalista e editora-chefe da revista Robb Report Brasil. Passou pelo Jornal do Brasil, O Globo, foi diretora de núcleo da Editora Três, onde dirigiu a IstoÉ Gente e foi colunista da IstoÉ.