VENEZA - O texano Wes Anderson começou a ler os livros infantis de Roald Dahl (1916-1990) aos sete anos. “Na época, era como tudo deve ser, com a linguagem precisa criada pelo autor britânico”, afirmou o cineasta de 54 anos, alfinetando a recente iniciativa de varrer os termos considerados ofensivos de sua obra.
Este ano, a Roald Dahl Company, responsável pelo espólio do escritor, e a Puffin Books, editora de suas obras no Reino Unido, fizeram uma revisão na linguagem, em nome de uma sociedade mais inclusiva, no que diz respeito à literatura infantil. Palavras como “gordo” foram substituídas por “enorme”. E nada de chamar um personagem de “feio”, “louco” ou “preto”.
Todo o conteúdo “insensível” foi retirado e reescrito nos mais de 20 livros infantis. Ao todo mais de 40 obras foram publicadas por Dahl, totalizando mais de 300 milhões de cópias vendidas ao redor do globo, com tradução para mais de 60 idiomas.
As conotações negativas estão relacionadas principalmente com peso, saúde mental, violência, gênero e raça usadas em, entre outros títulos para crianças, “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, “O Crocodilo Enorme”, “Matilda”, “James e o Pêssego Gigante” e “O Fantástico Sr. Raposo”.
Foi neste último livro, sobre o animal que não consegue parar de roubar galinhas, que Anderson se baseou para realizar a animação homônima, rodada como longa-metragem, em 2009.
“Não gosto da ideia de mudar as palavras. Eu até posso mudá-las um pouco nas minhas adaptações de Dahl. Mas eu só faço isso quando acho que o resultado será mais eficiente na transposição. E mesmo assim, mantendo o espírito irreverente de Dahl intacto”, contou Anderson ao NeoFeed, em Veneza.
Foi durante a 80ª edição do festival de cinema italiano que o diretor fez a première mundial de “A Incrível História de Henry Sugar”, inspirado na história publicada por Dahl em 1977.
Sugar (vivido por Benedict Cumberbatch) é um homem rico viciado em jogos de azar. Assim que ouve sobre as habilidades de um guru ( Ben Kingsley), de ver sem usar os olhos, ele decide aprender a fazer o mesmo para trapacear nos cassinos e ganhar ainda mais dinheiro.
Adaptado em um curta-metragem de 39 minutos, “Henry Sugar” entra nesta quarta, dia 27, no catálogo da Netflix, e tem ainda Ralph Fiennes e Dev Patel no elenco. O texto não foi alvo de “limpeza” da editora por ser uma trama direcionada a um público um pouco mais velho e não necessariamente o infantil.
“Queremos garantir que as histórias e os personagens maravilhosos de Roald Dahl continuem apreciados pelas crianças de hoje. Ao publicar novas tiragens de livros escritos anos atrás, não é incomum revisar a linguagem usada e atualizar outros detalhes, incluindo a capa do livro e o layout da página”, escreveu a Roald Dahl Story Company em um comunicado.
Desde que as mudanças foram feitas, a editora foi alvo de críticas. Salman Rushdie escreveu em sua conta no Twitter: “Roald Dahl não era nenhum anjo (referindo-se aos seus comentários antissemitas), mas isso é uma censura absurda. A Puffin Books e o espólio de Dahl deveriam ter vergonha.”
Foram tantas as reclamações que os responsáveis decidiram manter os originais em circulação, passando a oferecer também a opção da versão "lavada". Nela, vários trechos de obras sumiram.
Entre eles, alguns do livro “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, que inspira uma nova adaptação cinematográfica em dezembro, “Wonka”. Aqui não há mais a seguinte descrição de um personagem: “O homem atrás do balcão parecia gordo e bem alimentado. Ele tinha lábios grandes, bochechas gordas e um pescoço muito grosso.”
“Às vezes, é o próprio cineasta a mudar o seu trabalho, dizendo ser a nova versão de seu filme”, disse Anderson, em entrevista concedida no hotel Excelsior, no Lido de Veneza. “Mesmo assim, eu não gosto disso. Sinto que, quando vemos um filme, era a obra pretendida. Agora, é tarde demais para modificações. Todos nós já somos parte do filme”, completou ele.
O mesmo acontece com leitores de um livro, na visão de Anderson. “Quando um autor lança uma obra, ela passa a ser nossa também. Por isso, nem o autor é necessariamente autorizado a mudar algo. Ele não sabe o que mais gostamos ou desgostamos nela.”
Recentemente, Anderson também adaptou outras histórias de Dahl para a Netflix, que comprou a Roald Dahl Story Company em 2021, o que explica a aposta do serviço de streaming no imaginário do escritor.
Sem trocar qualquer palavra, por mais ofensiva que seja, Anderson rodou no formato de curta-metragem mais três histórias – ainda sem datas de estreia definidas na plataforma.
São elas: “O Cisne”, sobre um menino perseguido por dois valentões, “O Caçador de Ratos”, a trama de um exterminador de roedores feita em animação, e “Veneno”, sobre um indiano que acorda com cobra dormindo em sua cama.
“Como sou contra o próprio autor mudar a sua obra, a ideia de uma outra pessoa fazer isso em seu lugar, me incomoda ainda mais. Principalmente quando o escritor está morto e não pode reclamar”, disse Anderson, rindo.