LONDRES - Entender a dimensão dos negócios da Tencent e destrinchar como a empresa se relaciona com as ambições tecnológicas da China era a obsessão número um da jornalista chinesa Lulu Chen nos últimos anos.
Há dez anos na equipe de cobertura de negócios da Bloomberg, Chen lançou neste ano o livro Influence Empire: The Story of Tencent and China's Tech Ambition (algo como Império da Influência: A história da Tencent e das ambições tecnológicas da China), ainda sem tradução no Brasil. A obra foi escolhida recentemente como uma das seis finalistas do prêmio de Melhor Livro de Negócios do Ano do Financial Times.
Com histórias de bastidores para lá de instigantes, o livro publicado pela editora inglesa Hodder & Stoughton vem recebendo muitos elogios da crítica especializada. Em 256 páginas, Chen mergulha de cabeça na história da ascensão da Tencent, dona do superaplicativo WeChat, e de seu fundador, o abstruso Pony Ma - como tornou-se conhecido Ma Huateng, hoje presidente do conselho da Tencent
A autora explica como uma geração de empresários contemporâneos a Pony Ma conseguiu alcançar a “supremacia do capitalismo internacional através de relações simbióticas com o governo chinês”.
Mas ela também fala sobre como o poder de barganha com o regime chinês não é ilimitado nem para os mais ricos. “Espero que o livro ofereça algumas pistas sobre o que significa ser um empresário na China de Xi Jinping”, diz em entrevista exclusiva ao NeoFeed.
A Tencent é um dos maiores conglomerados de jogos, entretenimento e investimentos do mundo, que também se expande no Brasil. Domina na Ásia as mídias sociais com seu aplicativo WeChat, que possui mais de 1 bilhão de usuários, e é maior que o Facebook. Está presente na vida de bilhões de pessoas com sua participação em empresas como Tesla, Spotify, SnapChat, Nubank, entre outras.
Além disso, a Tencent também possui um poderoso braço de jogos, por trás de títulos como o Fortnite, o mais jogado do mundo. No segundo trimestre desse ano, a Tencent reportou receita total de US$ 20 bilhões, sendo a maior parte proveniente de seu braço de games. O valor de mercado do grupo é de cerca de US$ 300 bilhões. Confira a entrevista a seguir:
Quais reflexões você quer trazer para os leitores com seu livro?
“Império da Influência” é um livro que trata da era de ouro da internet na China vista pelo prisma da Tencent e das empresas que ela apoiou e com quem competiu. É também sobre como empresários que voaram alto tiveram suas asas cortadas pelo governo chinês. Escrevi o livro porque queria documentar a época em que Pony Ma e uma geração de empreendedores alcançaram a supremacia do capitalismo internacional ao explorarem uma relação quase simbiótica com partido comunista. Espero que o livro ofereça algumas pistas sobre o que significa ser um empresário na China de Xi Jinping.
"Espero que o livro ofereça algumas pistas sobre o que significa ser um empresário na China de Xi Jinping"
O que foi decisivo para a Tencent se tornar a maior empresa de internet da China?
A Tencent encontrou sua mina de ouro com as mídias sociais na era do desktop e depois conseguiu adentrar na vida das pessoas com o WeChat na era móvel. No entanto, Pony Ma sempre foi atento em diversificar o fluxo de receita da empresa desde sua fundação. A estratégia de abrir seu ecossistema e investir em startups em vez de competir com todos os que já estavam no mercado ajudou a Tencent a participar de negócios que se tornaram gigantes, incluindo o serviço de carona Didi e a plataforma de entrega de alimentos Meituan. Com muitos recursos financeiros e uma vasta rede de usuários, a Tencent se tornou um poderoso investidor global, participando ativamente do Spotify, Tesla, Snapchat e também investindo nas maiores empresas de jogos do mundo, incluindo a fabricante do Fortnite.
Quais são as principais semelhanças e diferenças entre a Tencent e outras gigantes da tecnologia como o Facebook?
Assim como o Facebook, a Tencent é uma gigante das mídias sociais por meio de seus aplicativos de bate-papo QQ e WeChat. No entanto, a Tencent centraliza praticamente todas as facetas da vida dos chineses. Originalmente, o WeChat era um aplicativo de bate-papo, mas a ferramenta cresceu e se tornou um portal de serviços, incluindo notícias, mídia social, carona, reservas de hotéis, comércio eletrônico, restaurantes, pagamentos de serviços públicos e muito mais. Uma maneira fácil de pensar sobre o WeChat, principal produto da Tencent, é que ele mescla funções de empresas diferentes como WhatsApp, Uber, Paypal, TikTok, Amazon, Yahoo News e Spotify em uma única plataforma.
"A Tencent dominou a criação de micro-inovações, especialmente quando se trata de design de interface de usuário"
No livro, você diz que fazer pequenas inovações em poucos dias é uma das marcas da Tencent. Por quê?
As primeiras empresas da internet chinesa imitavam os americanos. O Alibaba se espelhou no eBay. O Baidu, no Google. Mas a Tencent dominou a criação de micro-inovações, especialmente quando se trata de design de interface de usuário. No WeChat, por exemplo, eles conseguiram adicionar funções diversas muito rapidamente sem deixar a interface bagunçada. Com as pequenas e rápidas inovações da Tencent, muitas outras empresas começaram a fazer micro-inovações em seus serviços, adaptando-os aos mercados locais. O TikTok é um exemplo de uma forma de produto caseiro que conquistou usuários globalmente, tornando-se uma das poucas empresas chinesas que conseguem se expandir no exterior.
Como é a relação do governo de Xi Jinping com a Tencent?
A Tencent vem tentando equilibrar sua posição como entidade comercial ao mesmo tempo em que tenta sobreviver em um regime altamente regulamentado e censurado. Nos últimos dois anos, o governo chinês conduziu uma das repressões mais severas contra seus gigantes de tecnologia. A lição para Pony Ma e outros empresários do setor privado da China é que eles não têm poder de barganha com o governo chinês. O Partido Comunista acha a ideia da Tencent atraente e assustadora. A Tencent precisa entregar ao governo dados de usuários para que o Partido possa manter uma melhor compreensão da nação chinesa. A história por trás de como Ma conseguiu manobrar sob autoridades governantes vigilantes é uma das histórias não contadas mais fascinantes do livro.
"A história por trás de como Ma conseguiu manobrar sob autoridades governantes vigilantes é uma das histórias não contadas mais fascinantes do livro"
Pode dar exemplos?
Os esforços que Ma fez para existir sob o regime do Partido Comunista podem ser vistos através de gestos pequenos, como o destaque que a Tencent dá para os livros de Xi Jinping em sua biblioteca virtual, e até mesmo na adoção de QR codes que levam às histórias virtuosas do regime chinês, esses, colocados na sede da empresa. Em assuntos mais delicados, Ma se viu em perigo mesmo quando seguiu as ordens do governo. Em um desses episódios, o ex-vice-ministro de Segurança Pública, Sun Lijun, pediu à Tencent que lhe fornecesse informações sobre alguns colegas políticos. Após fornecer as informações, um executivo da Tencent foi investigado pela polícia por causa do compartilhamento não autorizado de dados pessoais coletados no WeChat. A Tencent então precisou dizer que o executivo estava sob investigação por “alegações de corrupção pessoal” e negou qualquer conexão com o WeChat.
Como a política interna da China e a disputa sino-americano prejudica o crescimento de gigantes da tecnologia chinesa?
A mentalidade de “ou você está contra nós, ou está conosco” está crescendo em ambos os países. O governo chinês implementou leis rígidas sobre coleta de dados e restrições de transferência. Nos EUA, as leis estão tornando as transações internacionais mais desafiadoras. Ambos os países estão dificultando a vida das empresas que precisam lidar com reguladores nos dois continentes. É uma linha tênue para a Tencent, parte do motivo pelo qual a empresa e seu cofundador e presidente Pony Ma sempre foram tão discretos. A Tencent é beneficiária do modelo que entrelaça o capital ocidental com o maior mercado online do mundo. Durante anos, sua estratégia de adquirir conteúdo no exterior encontrou pouca resistência e, até certo ponto, foi vista como uma coisa boa na China, mas isso está ficando para trás.
A relação próxima entre a Tencent e o governo chinês pode ser perigosa para os usuários dos produtos da Tencent?
Sim. A falta de privacidade da China também significa que suas empresas e governo têm uma vantagem quando se trata de coletar dados que capacitam os algoritmos que rastreiam, monitoram, humilham e, às vezes, aprisionam seus cidadãos. Os usuários do WeChat foram detidos pela polícia e condenados por meses por enviar mensagens críticas ao governo em chats privados. O governo arrepiou os usuários do WeChat em 2017, quando estipulou que os administradores eram pessoalmente responsáveis pelo que era dito nos grupos de bate-papo que administravam. Mesmo antes do anúncio, as autoridades chinesas disciplinaram 40 pessoas de um grupo do WeChat por espalhar cartas de petição, enquanto prendiam um homem que se queixava de batidas policiais.
"A falta de privacidade da China também significa que suas empresas e governo têm uma vantagem quando se trata de coletar dados que capacitam os algoritmos que rastreiam, monitoram, humilham e, às vezes, aprisionam seus cidadãos"
Como deveria ser a regulamentação desses gigantes da tecnologia?
Estamos vendo abordagens divergentes à regulamentação da Internet em todo o mundo. Em um extremo, você tem a China, onde o governo prejudicou suas maiores plataformas de internet e silenciou completamente vozes consideradas inadequadas, violentas ou contra o partido no poder. Já a Alemanha está intensificando seus esforços para combater o discurso de ódio na internet, incluindo um monitor central para crimes de ódio e responsabilizando as pessoas por suas palavras online. Enquanto nos EUA, intensos debates se desenrolam sobre se as empresas de plataforma têm a obrigação ou o direito de censurar a liberdade de expressão.
As autoridades estão falhando?
Observando a dinâmica entre inovação tecnológica, corporações e governo ao longo da história, os governos sempre estiveram um passo atrás. Muitas vezes, quando uma nova tecnologia surge, os primeiros a adotarem a veem como um meio de se libertar das mãos de regimes opressivos e grupos de interesse existentes. Mas, eventualmente, corporações e entidades governamentais assumirão a tecnologia e a aproveitarão e controlarão para seus próprios propósitos.