Mesmo com a vitória alcançada por Lula nesse segundo turno, elegendo-se presidente do Brasil em um terceiro mandato, o bolsonarismo continuará com sua força mobilizada e energizada nas ruas, explica Guilherme Casarões, cientista político, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas e Coordenador do Observatório da Extrema Direita, em entrevista para o NeoFeed.
Para o acadêmico, a polarização política continuará até pelo menos o próximo pleito, em 2026, com a eleição de um presidente que não seja Lula, nem Bolsonaro. "O momento do Brasil de hoje é a radicalização da polarização", afirma Casarões, ressaltando que a confrontação será duradoura porque "a política brasileira vem se tornando menos racional, mais afetiva e mais violenta". Para haver reconciliação, o país deverá passar por um processo de construção de uma nova realidade.
O professor advertiu que Bolsonaro conta uma base legislativa bastante ampla e fará uma oposição coesa e numerosa buscando barrar projetos e dificultar a vida de Lula. Do ponto de vista internacional, um dos pontos de atenção, diz, é uma eventual volta de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos, que poderá, segundo ele, viabilizar o retorno de Bolsonaro ao Planalto em 2026 e dificultar muito a vida do governo Lula.
Com a vitória de Lula, o bolsonarismo vai se enfraquecer?
O bolsonarismo - suas características básicas e maneiras de funcionar - não vai mudar muito em um primeiro momento. Tudo deve continuar assim por um tempo se o Bolsonaro permanecer no Brasil e estiver solto. A força do bolsonarismo está muito na rua e isso muito provavelmente vai continuar até porque o Bolsonaro sabe que a única forma de se manter legítimo é mobilizar e energizar a sua base. É claro que o bolsonarismo sem o Bolsonaro no poder terá muito menos recursos.
Qual o cenário, então?
Ele terá muito menos oportunidades de se reorganizar, mas a dinâmica deve continuar a mesma, pelo menos na minha perspectiva, comparando com o que observamos nos Estados Unidos, onde o Trumpismo resiste e o Trump continua como líder de um grupo relativamente forte dentro do Partido Republicano.
A polarização na sociedade será permanente ou teremos chance de reconciliação?
Eu diria que existe uma possibilidade de reconciliação, mas em médio prazo. O momento do Brasil hoje é não só de polarização, mas de radicalização dessa polarização. A sociedade está muito dividida entre Bolsonaro e Lula nesse momento. Vai ser um processo de construção de uma nova realidade que vai levar pelo menos quatro anos e que talvez se resolva, do ponto de vista político, apenas na eleição de um próximo presidente que não seja Bolsonaro, nem Lula.
Isso vai se refletir durante todo o governo Lula?
A confrontação política será duradoura e talvez permaneça ao longo de todo o mandato de Lula. Isso se deve ao fato de que a própria política brasileira vem se tornando menos racional, mais afetiva e mais violenta. O apoio a candidaturas e filiações políticas deixa de ser elemento secundário de grande parte do povo, passando a se tornar um fator central de pertencimento ao grupo e de identidade coletiva. Isso significa que teremos dificuldades de reconciliação política no futuro e indica que, muito provavelmente, os próximos meses serão conturbados, com risco de violência nas ruas e sabotagem do processo de transição governamental.
A ação de Roberto Jefferson contra a PF aponta na direção de atitudes cada vez mais violentas das forças de extrema direita?
O episódio de Roberto Jefferson, apesar de seu desfecho ruim para Bolsonaro, foi concebido como mais um capítulo de ataques da campanha bolsonarista contra o STF. Tudo indica que a ideia original era martirizar Jefferson em função de uma decisão supostamente injusta do ministro Alexandre de Moraes, atraindo apoiadores para a sua residência e jogando holofotes sobre a resistência contra atos alegadamente autoritários do Judiciário. O próprio envolvimento do ministro da Justiça deixou clara a associação do episódio com o bolsonarismo. Isso nos leva a crer que esse mesmo tipo de ação contra o STF não é caso isolado e faz parte do modus operandi da campanha, que quer reforçar a todo custo a narrativa de fraude eleitoral liderada pelo próprio Supremo. Por isso, temo que haverá episódios violentos nessa mesma linha, caso Bolsonaro se recuse a reconhecer a derrota.
Como será a oposição bolsonarista ao governo Lula?
O Bolsonaro vai ter uma oposição bastante coesa e numerosa para barrar projetos. Esse me parece um ponto importante, além dos governos de Estado, que vão ser cruciais para que o Bolsonaro possa ter algum tipo de controle, algum tipo de plataforma. A nova legislatura do Congresso é inquestionavelmente mais bolsonarista que no passado. Em 2018, muitos candidatos foram eleitos surfando a onda da popularidade do então candidato Bolsonaro, mas não se identificavam totalmente com o movimento, com a ideologia ou com determinadas pautas. Disputas internas no PSL, então partido do presidente, afastaram do núcleo governista diversas figuras políticas importantes, como Janaína Paschoal, Joice Hasselmann e João Dória – o que marcou seu fracasso eleitoral posterior.
E agora?
Em 2022, a enorme bancada bolsonarista na Câmara e no Senado, além de muitos governadores, é muito mais ligada ao presidente em termos ideológicos e programáticos. A diminuição de uma direita fisiológica e o crescimento de uma direita ideológica é a principal marca da atual legislatura. Outro elemento importante é a redução dos partidos de centro-direita, notadamente o PSDB, que elege a sua menor bancada histórica e fica em vias de extinção.
Quais serão as principais pedras que o presidente eleito Lula encontrará em seu caminho?
Os principais obstáculos estarão no Congresso e nos Estados. A bancada Legislativa bolsonarista cresceu e está mais sólida, com o PL elegendo 99 cadeiras na Câmara. Com perspectiva de vitória em São Paulo e no Rio Grande do Sul, o bolsonarismo terá muita força nos grandes estados do Sul e do Sudeste, além de enorme influência no Centro-Oeste, onde impera o agronegócio. Lula, portanto, terá que fazer concessões importantes para articular com tais forças políticas estaduais e legislativas, já que a implementação de políticas públicas depende de arranjos federativos e da aprovação de leis no Congresso.
Como o bolsonarismo mudou as instituições brasileiras?
De duas formas. A primeira foi criar um antagonismo permanente com as instituições. Então, uma das estratégias do Bolsonaro, tanto nas eleições, mas sobretudo para governar, foi jogar seus apoiadores sempre contra as instituições políticas. Ele criou um estilo de presidência da República que antagoniza permanentemente contra as instituições políticas: Supremo Tribunal Federal, Congresso, governos de estado. A segunda maneira com que o Bolsonarismo mudou as instituições tem a ver com o desmonte institucional das burocracias de Estado. Várias áreas que eram chaves para os interesses dos grupos que sustentam o bolsonarismo foram demolidas, como meio ambiente, educação e cultura. Isso resultou em um Estado bastante debilitado.
Como se dá o enraizamento do bolsonarismo na sociedade?
É difícil definir o perfil do bolsonarista porque é muito variado. Mas há elementos mais específicos ligados a alguns grupos. Eu diria que o bolsonarismo é um movimento predominantemente rural, ainda que exista em rincões urbanos. Tem uma classe média rural, principalmente de São Paulo e do Centro Oeste, que é muito bolsonarista. O bolsonarismo é um fenômeno urbano principalmente entre classe média e classe média baixa.
Quais os contornos deste fenômeno?
Ele é predominantemente branco, ainda que não exclusivamente, e predominantemente masculino. Se eu pudesse trazer um elemento moral aí, o bolsonarismo é predominantemente evangélico. Essas características falam de alguma forma sobre o enraizamento do bolsonarismo. Há uma população evangélica, masculina, predominantemente rural, de classe média e de classe média baixa que está espalhada pelo Brasil, embora tenha alguns focos de concentração: Centro Oeste, partes do Sudeste e do Sul são redutos bolsonaristas.
O que sustenta o bolsonarismo na sociedade?
O elemento principal foi uma construção bem-sucedida por Jair Bolsonaro de uma dinâmica sobre maioria e minoria. Bolsonaro chegou na presidência dizendo que vai governar para as maiorias. Obviamente essa não é a ideia da democracia. Democracia devia ser um governo que contemplasse todos os interesses, majoritários e minoritários da sociedade. Mas ao dizer que ele vai governar para as maiorias, afirmando que as minorias têm que se adaptar ou se curvar às maiorias – frases dele – Bolsonaro criou um senso de pertencimento. Ele consegue manter aquelas pessoas unidas dentro dessa construção bem-sucedida do que é uma maioria, que é uma bobagem.
Qual o retrato, então?
O Brasil não é cristão homogeneamente e não é conservador integralmente. Mas essa ideia de se construir um senso de grupo que pertença a uma maioria que o Bolsonaro representa, sustenta de alguma forma o movimento e deixa as pessoas realmente confortáveis fazendo parte daquele grupo.
Bolsonaro tem parcerias internacionais com a extrema direita, sendo o caso mais famoso o de Donald Trump, que pode voltar ao poder. Se isso acontecer como poderá afetar a vida política brasileira?
De todas as mudanças políticas internacionais que possam acontecer e ter efeito sobre a política brasileira, a eleição de Trump é a mais importante delas porque isso muda o peso simbólico e político da extrema direita em nível global. A sensação que eu tenho é que o retorno de Trump pode viabilizar um retorno de Bolsonaro em 2026 no Brasil. Acho que essa lógica faz sentido e me preocupa bastante. Será muito difícil para o Lula governar com o Trump nos EUA. Será muito fácil para o Bolsonaro tentar voltar com Trump nos EUA. Então, são dois problemas em um. Em termos de outras coisas, tudo vai depender, claro, da guerra na Ucrânia, da situação da China, mas eu diria que esse é o principal elemento que pode mudar a política brasileira. O Trump já declarou, inclusive, apoio ao Bolsonaro, já postou nas redes sociais. Isso vai ter impacto.
E os demais cenários internacionais?
Houve derrota da extrema direita na América do Sul, a derrota da extrema direita americana, a vitória da extrema direita em alguns países da Europa mas também a derrota em outros. Na Inglaterra, por exemplo, essa mudança foi uma espécie de moderação do partido. Então, eu não acho que isso vai ter um impacto direto na realidade brasileira. É claro que num eventual governo Lula, pode ser que ele possa ter mais dificuldade de lidar com alguns países que tenham governos conservadores ou ultra-conservadores, mas eu também acho que a extrema direita europeia em particular tende a ser mais pragmática do que a extrema direita americana.
Pode dar exemplos?
O Mateus Salvini, na Itália, que foi o vice-primeiro ministro daquela coalizão esquisita, alguns anos atrás, era super pró-China, apesar de ser anticomunista. O Victor Orban [Hungria] tem relação com a China e com a Rússia, apesar de ser um sujeito antiglobalista. Então, acho que isso tende a afetar menos essa realidade dos países, ao contrário do caso da extrema direita americana que é mais ideológica nas suas relações.