O professor israelense de história Yuval Harari se tornou uma celebridade mundial por conta de três livros que fizeram um imenso sucesso. O primeiro deles “Sapiens” trazia uma breve história da humanidade. Já “Homo Deus” falava do futuro, em que a tecnologia da informação unida a biotecnologia criaria uma nova categoria de humanos. E, por fim, “21 lições sobre o Século 21” traçava cenários sobre o mundo em que vivemos.
Apesar de ser crítico das tecnologias de vigilância e, em especial, das grandes empresas do Vale do Silício, Harari se transformou em um guru dos empreendedores da região com maior metro quadrado de empresas de tecnologia do planeta.
Bill Gates, o fundador da Microsoft, por exemplo, descreveu sua última obra como “fascinante” e o classificou como um autor estimulante, em uma entrevista ao The New York Times.
O CEO e fundador da Netflix, Reed Hastings, já organizou um jantar para Harari e depois fez o seguinte comentário sobre o professor israelense. “Seus pensamentos sobre inteligência artificial e biotecnologia em seu novo livro levam nosso entendimento aos dramas que ainda vão se desenrolar.”
Agora, Harari está refletindo sobre o coronavírus e o impacto para o futuro da humanidade. Em um longo artigo para o jornal britânico Financial Times, intitulado “O mundo depois do coronavírus”, ele diz que “a humanidade agora está enfrentando uma crise global. Talvez a maior crise da nossa geração.”
E completa: “As decisões tomadas pelas pessoas e pelos governos nas próximas semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos. Elas moldarão não apenas nossos sistemas de saúde, mas também nossa economia, política e cultura. Devemos agir de forma rápida e decisiva.”
O que preocupa tanto Harari? “Neste momento de crise, enfrentamos duas escolhas particularmente importantes. O primeiro é entre vigilância totalitária e empoderamento do cidadão. O segundo é entre isolamento nacionalista e solidariedade global”, escreveu o professor e escritor israelense.
A partir de então, Harari passa a discutir as tecnologias de vigilância. O escritor diz que, pela primeira vez na história da humanidade, a tecnologia torna possível monitorar todos o tempo todo.
“Em sua batalha contra a epidemia de coronavírus, vários governos já implantaram as novas ferramentas de vigilância. O caso mais notável é o da China. Ao monitorar de perto os smartphones das pessoas, usar centenas de milhões de câmeras que reconhecem o rosto e obrigar as pessoas a verificar e relatar sua temperatura corporal e condição médica, as autoridades chinesas podem não apenas identificar rapidamente os portadores suspeitos de coronavírus, mas também rastrear seus movimentos”, diz um trecho do texto.
Para Harari, a novidade agora é que haverá uma transição dramática da vigilância "sobre a pele" para a vigilância "sob a pele". Explica-se: até então, quando seu dedo toca a tela do seu smartphone e clica em um link, o governo queria saber exatamente o que seu dedo estava clicando. Mas com o coronavírus, o foco de interesse muda. Agora, o governo quer saber a temperatura do seu dedo e a pressão sanguínea sob a pele.
“As decisões tomadas pelas pessoas e pelos governos nas próximas semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos"
“Considere um governo hipotético que exija que todo cidadão use uma pulseira biométrica que monitore a temperatura do corpo e a frequência cardíaca 24 horas por dia. Os dados resultantes são acumulados e analisados por algoritmos governamentais. Os algoritmos saberão que você está doente mesmo antes de conhecê-lo e também saberão onde você esteve e quem conheceu. As cadeias de infecção podem ser drasticamente encurtadas e até cortadas por completo. É possível que esse sistema possa parar a epidemia em questão de dias. Parece maravilhoso, certo?”, escreve Harari.
Mas um sistema desse daria legitimidade para um sistema de vigilância. Os governos saberiam suas opiniões políticas e até mesmo informações sobre a personalidade de seus cidadãos. “O monitoramento biométrico faria as táticas dos hackers de dados da Cambridge Analytica parecerem algo da Idade da Pedra.”
Será que essa poderia ser uma medida temporária para enfrentar um estado de emergência? Harari aborda essa questão. E lembra que medidas temporárias têm o hábito “desagradável de superar as emergências, especialmente porque sempre há uma nova emergência à espreita no horizonte.”
O escritor exemplifica com seu país natal, Israel, que durante a Guerra da Independência, em 1948, declarou estado de emergência. Na época, havia censura à imprensa, confisco de terras e até mesmo uma regra especial que impedia as pessoas de fazerem pudins. Isso mesmo. A medida do pudim só foi abolida em 2011.
Mas se dá uma série de informações aos governos, as medidas de vigilância podem dar mais transparência as ações dos governos. “Se eu pudesse rastrear minha própria condição médica 24 horas por dia, aprenderia não apenas se me tornei um risco à saúde de outras pessoas, mas também quais hábitos contribuem para minha saúde. E se eu pudesse acessar e analisar estatísticas confiáveis sobre a disseminação do coronavírus, seria capaz de julgar se o governo está me dizendo a verdade e se está adotando as políticas corretas para combater a epidemia. Sempre que as pessoas falam sobre vigilância, lembre-se de que a mesma tecnologia de vigilância geralmente pode ser usada não apenas pelos governos para monitorar indivíduos - mas também por indivíduos para monitorar governos.”
E afirma: “A epidemia de coronavírus é, portanto, um grande teste de cidadania. Nos próximos dias, cada um de nós deve optar por confiar em dados científicos e especialistas em saúde em detrimento de teorias infundadas da conspiração e de políticos que servem a si mesmos. Se não conseguirmos fazer a escolha certa, poderemos perder a liberdade, pensando que essa é a única maneira de proteger nossa saúde.”
O segundo ponto do artigo de Harari refere-se a questão do isolamento nacionalista e a solidariedade global. Ele parte da premissa que tanto a epidemia em si quanto a crise econômica resultante são problemas globais, que podem ser resolvidos efetivamente apenas pela cooperação global.
Por esse motivo, é preciso compartilhar informações. “Essa é a grande vantagem dos humanos sobre os vírus. Um coronavírus na China e um coronavírus nos EUA não podem trocar dicas sobre como infectar humanos. Mas a China pode ensinar aos EUA muitas lições valiosas sobre o coronavírus e como lidar com isso.”
“O monitoramento biométrico faria as táticas dos hackers de dados da Cambridge Analytica parecerem algo da Idade da Pedra.”
Para Harari, os países devem estar dispostos a compartilhar informações de maneira aberta e humilde. E alerta que é necessário um esforço global para produzir e distribuir equipamentos médicos, principalmente testes de kits e máquinas respiratórias. “Um esforço global coordenado poderá acelerar bastante a produção e garantir que o equipamento que salva vidas seja distribuído de maneira mais justa.”
Mas Harari admite que não é o que vem acontecendo. “Infelizmente, atualmente os países dificilmente fazem algumas dessas coisas. Uma paralisia coletiva tomou conta da comunidade internacional. Parece não haver adultos na sala. Nas crises globais anteriores - como a crise financeira de 2008 e a epidemia de Ebola de 2014 - os EUA assumiram o papel de líder global. Mas o atual governo dos EUA abdicou do cargo de líder. Deixou bem claro que se preocupa muito mais com a grandeza da América do que com o futuro da humanidade.”
"Uma paralisia coletiva tomou conta da comunidade internacional. Parece não haver adultos na sala"
E, por fim, conclui: “A humanidade precisa fazer uma escolha. Iremos percorrer o caminho da desunião ou adotaremos o caminho da solidariedade global? Se escolhermos a desunião, isso não apenas prolongará a crise, mas provavelmente resultará em catástrofes ainda piores no futuro. Se escolhermos a solidariedade global, será uma vitória não apenas contra o coronavírus, mas contra todas as futuras epidemias e crises que possam assaltar a humanidade no século XXI.”