A Princesa Diana é obrigada a se pesar assim que chega à Sandringham House, a casa de campo onde tradicionalmente a família real britânica celebra o Natal. E pouco depois o Príncipe Charles ainda alfineta a esposa, pedindo para ela não “regurgitar no vaso sanitário” o banquete preparado especialmente para a comemoração.
A bulimia de Diana, algo que a própria admitiu em 1995, em entrevista à BBC, é um dos principais tormentos da princesa no drama “Spencer”. E pelo que o filme exibido no 78º Festival de Veneza sugere, os problemas no casamento e pressão que ela sofria para manter as aparências só agravavam o seu transtorno alimentar. Ou pior: talvez o peso que ela carregava é que tenha desencadeado o quadro de bulimia.
Qualquer que seja a conclusão do espectador após ver o filme, “Spencer” se concentra nos danos psicológicos que a vida na realeza causou em Diana – morta em 1997, em acidente de carro, aos 36 anos. Longe de ser uma cinebiografia convencional, com os altos e baixos de uma personalidade, “Spencer” praticamente só tem olhos para as fragilidades e perturbações sofridas pela princesa.
O ponto de partida no filme (ainda sem data para estrear no Brasil) é a chegada de Diana, visivelmente angustiada, à Sandringham House, para o que seria o seu último Natal na companhia da família real.
Pelo caminho, dirigindo sozinha seu Porsche conversível pelo interior da Inglaterra, ela já se perde. “Onde diabos eu estou?”, diz, com medo de chegar atrasada ao compromisso, o que seria considerado uma ofensa à rainha.
Dirigido pelo diretor chileno Pablo Larraín, o mesmo que assinou as cinebiografias “Jackie” (2016) e “Neruda” (2016), “Spencer” é estruturado em três dias (24, 25 e 26) de dezembro de 1991. Esse período é apresentado como a gota d’água para o fim do casamento com Charles, que sempre foi turbulento, devido ao caso de longa data do príncipe com Camilla Parker-Bowles.
Em uma das cenas, Diana se mostra ofendida por ter recebido de presente de Natal o mesmo colar de pérolas que Charles deu à amante. O casal ainda troca farpas, à mesa, por suas infidelidades mútuas. Na época, a princesa traída era acusada de dar o troco saindo com um antigo oficial do exército britânico, James Hewitt, seu instrutor de equitação.
São várias as situações que jogam Diana para baixo na história, escrita por Stephen Knight, de “Senhores do Crime” (2007). Para começar, um ex-soldado é encarregado de ficar de olho na princesa (vivida aqui por Kristen Stewart), que a família real vê como uma renegada, principalmente por ela quebrar muitos protocolos.
Os excessos cometidos em nome da tradição a acompanham o filme todo. Seja no restrito cronograma de refeições ou na obrigação de usar as roupas que lhe foram designadas para cada ocasião. Até um simples ato de desembrulhar presentes segue um ritual específico.
Diana se sente controlada e vigiada o tempo todo, mesmo quando está sozinha, o que mais acontece, por ela ser tratada com frieza pela família. Como a própria Diana diz no filme: “Eles ouvem tudo, até seus pensamentos”.
Como a separação de Diana e Charles só veio a público quase um ano depois daquele Natal em Sandringham House (anunciada oficialmente em 9 de dezembro de 1992), o que o filme faz é especular. Mais precisamente, como pode ter sido para a princesa aquela última festividade em família, enquanto o seu casamento desabava.
Embora explore alguns aspectos calcados na realidade de Diana, o roteiro é mais uma fantasia, como Larraín já adianta nos primeiros minutos de filme, intitulado com o sobrenome de solteira da princesa. “Uma fábula a partir de uma verdadeira tragédia” é como “Spencer” é vendido nos créditos iniciais.
“Muitas histórias foram escritas sobre Diana. Algumas podem ser provadas, outras não”, declarou o diretor, no material de divulgação entregue à imprensa, em Veneza. O roteiro do filme é baseado em extensa pesquisa sobre a princesa, sobre as tradições do Natal na família real e as curiosidades sobre as festividades na Sandringham House (a partir de relatos de quem teria trabalhado lá).
“Como a família real é notoriamente discreta, quando as portas se fecham, ninguém sabe o que acontece por trás delas. Isso rende muita ficção e esse foi o nosso trabalho. Não queríamos um docudrama. Criamos algo com elementos reais, mas usamos também a nossa a imaginação para contar a vida de uma mulher com as ferramentas do cinema”, declarou Larraín.
Isso explica toda a licença poética de “Spencer”, que envolve o espectador em uma atmosfera de pesadelo. Como quem se sente presa em uma gaiola de ouro, a princesa afoga as suas mágoas e frustrações na bulimia, na tendência à automutilação e até em alucinações.
Enquanto ela lê um livro sobre Ana Bolena (1501/1507 – 1536), outra mulher desgraçada depois de passar pela realeza, Diana tem várias visões. Em uma delas, vê o fantasma da rainha consorte de Henrique VIII sentado à mesa do jantar, à sua frente.
E a referência à rainha que acabou decapitada não é gratuita. Ana Bolena foi executada sob a acusação de adultério, enquanto quem tinha de fato um caso, segundo a maioria dos historiadores, era o rei.