Ao longo de 2020 e 2021, à medida que a pandemia do novo coronavírus avançava no Brasil, a taxa de desemprego, que já era alta, atingiu o patamar recorde de 14,7% - hoje está em 11,2%.
Um setor, no entanto, passava imune aos cortes de vagas. Era o de tecnologia e de startups, que iam de vento em popa, vitaminados por generosos recursos vindos de aportes de fundos de Venture capital, que atingiram o patamar recorde de US$ 9,4 bilhões em 2021.
Entre essas startups, havia uma guerra por talentos, que elevou os salários dos profissionais. Mas esse oásis parece que está chegando ao fim. Em um cenário em que ficou mais difícil captar e de que é necessário poupar recursos, as startups começam a demitir. É o que aconteceu com Facily, Loft e QuintoAndar, que cortaram centenas de profissionais nas últimas semanas.
A Facily, que atua em comércio eletrônico, demitiu entre 200 e 300 empregados nesta semana, conforme apurado pelo NeoFeed. Isso representa um percentual próximo de 30% da base de 860 trabalhadores da companhia.
“É um choque de realidade”, diz um investidor com quem o NeoFeed conversou. “Elas precisam poupar dinheiro, pois vai ser mais difícil captar recursos a partir de agora.” E conclui: “Elas precisam apresentar resultados e não só queimar caixa.”
As demissões da Facily ocorrem menos de seis meses após a startup captar um aporte de US$ 135 milhões que a tornou unicórnio. Na época, a companhia havia informado que o dinheiro seria utilizado para reforçar a operação logística e resolver problemas que levaram a empresa a ser recordista de reclamações no Procon.
Funcionários que foram desligados da startup relataram ao NeoFeed que já havia um receio de que as demissões iriam acontecer. Em janeiro deste ano, a companhia congelou contratações e aumentos de salário.
Os rumores se intensificaram nos últimos meses, quando funcionários passaram a ser informados, durante reuniões de negócios, que a empresa estava passando por uma reestruturação para, entre outros objetivos, reduzir custos.
Os desligamentos foram realizados na terça-feira, 19 de abril, em reuniões virtuais feitas por gestores de equipes. Antes disso, na madrugada do mesmo dia, alguns trabalhadores já relatavam que estavam sem acesso a determinados sistemas virtuais da Facily.
Em uma dessas reuniões ocorrida na terça, um executivo leu uma carta em que informava que todos na chamada de vídeo estavam sendo demitidos. Cerca de 35 pessoas estavam na sala. Segundo relatos, houve pouco tempo para que os funcionários se manifestassem após o anúncio.
Logo após a demissão, a Facily interrompeu o acesso dos funcionários a aplicativos de comunicação, como o Slack, e aos e-mails. “Não deu nem tempo para se despedir dos colegas”, diz um dos funcionários demitidos pela companhia.
Outro ex-empregado da Facily afirmou ao NeoFeed que a companhia disponibilizou um “guia de boas práticas para realocação”, com dicas de como fazer o melhor uso de plataformas de busca de emprego e como atualizar corretamente o currículo profissional.
Uma planilha que traz mais de 200 vagas de trabalho em empresas como Ambev Tech, Bemobi, iFood, Neon, PicPay, entre outras empresas, também passou a circular entre os funcionários.
Procurada pela reportagem, a Facily enviou uma nota em que informa que “busca constante evolução e eficiência para melhorar a experiência de todos que fazem parte e interagem com a empresa” e que “mudanças, inclusive em times, são necessárias para isso”.
Questionada sobre o número de funcionários que foram demitidos, a Facily inforou que “para preservar as nossas pessoas preferimos não comentar sobre os processos internos, pois tratamos de forma sigilosa e respeitosa”.
Loft e QuintoAndar
As demissões na Facily completa uma trinca de startups que realizaram cortes durante os últimos dias. Além da empresa de comércio eletrônico, as startups do setor imobiliário Loft e QuintoAndar também desligaram dezenas de profissionais nas últimas semanas.
Na Loft, ex-funcionários relatam que a companhia começou a passar por mudanças a partir da aquisição da CrediHome, feita em agosto do ano passado. A incorporação do negócio com os funcionários que já trabalhavam na área de crédito da Loft gerou atrito.
Os relatos são de que algumas cadeiras deixariam de existir com a incorporação do negócio. A tendência era de que a corda fosse arrebentar para o lado dos funcionários da área de crédito da Loft, uma vez que, a startup adquirida teria maior experiência na área.
Em nota, a Loft informa que desligou 159 funcionários, a “maioria das áreas comercial e de operações”. A companhia também disse que outros 52 empregados foram transferidos para outras empresas do grupo, como CredPago, Nomah, Vista e o próprio marketplace da proptech.
A companhia também informou que "vai apoiar os ex-funcionários na recolocação de mercado, por meio do fornecimento de três meses do serviço Premium do Linkedin, assim como extensão do plano de saúde por mais dois meses, inclusive aos dependentes".
Ainda que houvesse um receio de que desligamentos poderiam ocorrer na proptech, funcionários informaram que não tiveram qualquer conversa prévia ao anúncio do desligamento.
“Quem ligou o computador para trabalhar normalmente, foi chamado para uma conversa virtual e depois os acessos foram suspensos”, disse um ex-funcionário. “Não conseguimos nem retirar documentos pessoais salvos na máquina.”
No QuintoAndar, a companhia informou que realizou um corte de 4% na base de funcionários, o que resulta em algo próximo de 160 desligamentos. O NeoFeed apurou que os cortes foram realizados em função de um reposicionamento da companhia mediante ao aumento do preço do dólar e a incerteza econômica gerada pela guerra na Ucrânia.
A onda de demissões das startups brasileiras parece seguir uma tendência global. Uma reportagem do site The Information apontou que 2 mil funcionários foram demitidos de empresas de tecnologia do Vale do Silício no último mês. Mais cortes podem acontecer nas próximas semanas.
No começo de abril, durante o Tech Founders, evento organizado pelo Itaú BBA, Martín Escobari, head da América Latina do General Atlantic, afirmou que o “Brasil havia chegado atrasado para a festa, mas ela acabou para todo mundo.”
Escobari se referia ao fato de que o aumento dos juros no Brasil e no mundo estava encerrando um ciclo de capital farto para startups e empresas de crescimento acelerado. E que a correção de valor que acontecia nas bolsas iria chegar ao mercado privado.
No caso dos cortes, ao que tudo indica, o Brasil não está chegando atrasado para essa “festa” indigesta.