Há exatos 44 anos, em dezembro de 1976, o Brasil ganhava o seu melhor embaixador de espumantes. Naquela data, o chileno Mario Geisse chegou à Serra Gaúcha, aceitando o convite da Chandon para assumir a sua vinícola no Brasil.
Logo na primeira safra, Geisse se surpreendeu com a qualidade de nossos espumantes. “Pensei: se com aqueles vinhedos precários, eu conseguia aqueles vinhos, imagina com as plantas bem conduzidas”, lembra ele.
E não tardou para ele se tornar o enólogo referência nos espumantes nacionais, mesmo sendo chileno. Em 1979, ele se estabeleceu no Brasil e fundou a sua própria vinícola, a Cave Geisse, defendendo e divulgando a bebida, em uma época em que nem os brasileiros acreditavam em sua qualidade.
Mas Geisse foi além do trabalho de divulgação. Ele lapidou a qualidade das borbulhas nacionais. O auge veio em 2011, quando a inglesa Jancis Robinson, uma das maiores especialistas mundiais nesta área, elegeu o Cave Geisse 1998, como um dos vinhos que marcarão o futuro da viticultura nacional.
A Cave Geisse, vinícola que ele tem com os seus filhos brasileiros, em Pinto Bandeira, na Serra Gaúcha, trouxe conceitos como só utilizar uvas próprias, de valorizar o seu terroir, além de avanços técnicos nas fermentações e amadurecimento dos espumantes.
Com uma área de 80 hectares, apenas metade é cultivada com vinhedos. O restante, que não tem o subsolo ideal para as vinhas, é mantido com mata nativa e forma o microterroir que dá origem aos seus espumantes.
Neste conturbado ano de 2020, Geisse apostou em lançamentos de espumantes de nicho – como o laranja e o Sur Lie – e viu o comércio online se tornar um caminho para escoar os seus espumantes, neste período de poucas festas, como ele conta a seguir nesta entrevista:
Como foi este ano?
O que aconteceu foi uma mudança na forma de comercializar. Não tenho os dados de todo o setor, mas as nossas vendas se comportaram bem. O que ficou de lado foi a venda para grandes eventos e o consumo nos restaurantes. Mas as vendas online cresceram muito, não apenas para nós, mas para todos os produtores. Acho que, no fim de ano, as pessoas vão consumir igualmente espumante, mas em núcleos menores, sem as grandes festas. Normalmente ficamos sem alguns produtos no fim de novembro e isso aconteceu novamente neste ano. Como só elaboramos espumantes com uvas próprias, não temos como aumentar a produção.
Mas teve uma importante redução no enoturismo?
Este ano foi menor. No ano passado, recebemos 30 mil turistas. Agora, estamos com 21 mil pessoas até novembro. O que acontece é que quando é permitido abrir para o turista, recebemos um mar de gente. Visitar vinícola é um turismo ao ar livre, com contato com a natureza. As pessoas se sentem mais seguras.
"Visitar vinícola é um turismo ao ar livre, com contato com a natureza. As pessoas se sentem mais seguras"
Esse ano, vocês lançaram dois produtos: o Sur Lie e o Laranja. Estes lançamentos ajudaram nas vendas?
Antes da quarentena, lançamos o Cave de Amadeu Sur Lie, que tem a ver com as nossas raízes. [O espumante é comercializado sem a retirada das leveduras, se tornando turvo, mas continua ganhando complexidade na garrafa]. Quando comecei, não tínhamos todos os equipamentos e consumíamos espumantes assim, sem tirar a levedura. E lançamos também o Cave de Amadeu Laranja, em que as cascas maceram com o suco no vinho base e fermentam sem a adição de leveduras. É uma proposta diferente. Mostra que a vinícola chegou a uma maioridade tal que pode se permitir fazer experiências. Estamos sempre fazendo experiências, procurando espumantes diferentes, que nos dê prazer.
Quais as previsões para 2021?
Tudo indica que teremos uma safra de excelente qualidade para espumantes. A mim não surpreende. Normalmente a safra gaúcha é boa para os espumantes. Nestes mais de 40 anos de Brasil, peguei pouquíssimas safras frustradas. Às vezes, as geadas reduzem a quantidade, mas não a qualidade. Este ano também teve geada na região e algumas vinícolas perderam parte das uvas. Nós não tivemos problemas. Devemos começar a colheita por volta de 10 de janeiro. Devo chegar no Brasil nesta data.
Está sentindo falta do Brasil?
Sim, antes eu ia ao menos uma vez por mês. No máximo, a cada um mês e meio. Agora estou direto no Chile e visito os meus vinhedos aqui de bicicleta. Para ir ao Brasil em janeiro, vou pegar um voo direto até Florianópolis. Um dos meus filhos vai me pegar no aeroporto e descemos de carro para a Cave Geisse. A situação da Covid está mais complicada no Brasil do que no Chile e estou tomando cuidados. Um deles é evitar aviões e aeroportos. Outro é andar de bicicleta.
Por que o Brasil tem vocação para os espumantes?
Algumas regiões da Serra Gaúcha têm uma característica que é difícil de encontrar no resto do mundo. Conseguimos colher a uva madura, com uma graduação de 16 graus babo [medida técnica de açúcar da uva], tanto a chardonnay como a pinot noir, que são as uvas que usamos para os espumantes. Há muita confusão entre maturidade e o açúcar da uva. A uva precisa estar madura na época da colheita, não apenas o seu suco. A uva tem de ter um equilíbrio entre a semente, a pele e o suco. Aqui, este equilíbrio se produz com menor teor de açúcar. Isso tem muito a ver com o clima, que não é somente a temperatura, mas o conjunto do vento, da umidade, do sol, da temperatura no vinhedo. Sou um defensor da condição de produzir espumante no Brasil. É o mesmo que acontece em Champanhe, com a uva madura e com baixo teor de açúcar, mas com outros equilíbrios climáticos.
Você, um chileno, foi um dos primeiros a acreditar nos espumantes brasileiros.
Quando cheguei no Brasil, não sabia que a região era maravilhosa. Aceitei o convite porque era uma experiência importante para um jovem enólogo. Quando vi os vinhedos pela primeira vez, fiquei preocupado. Mas o que me entusiasmou foi a qualidade do meu primeiro espumante. Era muito melhor do que eu conseguia fazer no Chile com uma uva que, teoricamente, era melhor. Soube que se eu trabalhasse o vinhedo, teria vinhos excepcionais. Hoje o espumante brasileiro é competitivo a nível mundial e está se formando na região a cultura do espumante, cada produtor entrega a sua experiência de fazer cada vez melhor o produto e uma geração ensina para a outra. Isso enriquece a região.