Um casal de negros não chega ao posto mais elevado do país mais rico do mundo por acaso. Quem olha para trás e vê que, até o começo da década de 1960, os afrodescendentes americanos tinham de se sentar nos bancos de trás dos ônibus e não usar banheiro dos brancos, ter visto Barack Obama na presidência dos EUA e Michelle como primeira-dama foi um triunfo que poucos conseguem dimensionar, pelo pouco tempo entre a segregação racial e tal conquista – apenas pouco mais de meio século.

Nesse processo, Michelle rompeu com a passividade que costuma marcar esse posto e assumiu um protagonismo que se tornou fundamental para o êxito da gestão do marido. Esse papel se tornou ainda mais destacado quando, em 2018, ela lançou sua autobiografia Minha história, sucesso mundial de crítica e de vendas.

No primeiro caso, porque ela a escreveu com rara sensibilidade e capacidade de compreender e interpretar tudo que viveu desde a infância na zona sul de Chicago até os desafios de gerenciar uma carreira de executiva como mulher e negra com as demandas da maternidade. E o longo caminho que percorreu com Barack até ele chegar à presidência. Agora, ela volta com uma espécie de continuidade, mas que chega até o ano de 2022, com uma série de reflexões sobre a pandemia.

Na apresentação de Nossa Luz Interior – Superação em tempos incertos (Objetiva), que sai simultaneamente no Brasil e em mais 35 países e 22 línguas, ela explica que quando lançou Minha história, ficou desconcertada pela reação.

“Eu tinha mergulhado no livro a fim de compreender meu período como primeira-dama dos Estados Unidos e minha vida de modo geral. Não compartilhei só os episódios alegres e glamorosos, mas também as situações mais difíceis que enfrentei e ver o legado do trabalho duro de meu marido como presidente nas mãos de um sucessor imprudente e indiferente”.

Um aspecto interessante é o modo usado por ela para alinhar a narrativa, a partir do foco em objetos, como a bengala do pai, que a marcou quando ele definhava por causa de uma doença degenerativa.

“Quando uma ferramenta deixava de funcionar para ele, sua utilidade neutralizada pela força da doença, saíamos e achávamos outra — a bengala substituída por um par de muletas, as muletas substituídas por um carrinho motorizado e uma van adaptada, cheia de alavancas e com um sistema hidráulico para compensar os movimentos que o corpo dele já não era capaz de fazer”.

Da resiliência do pai ela tirou várias lições. “Em geral, meu pai simplesmente ria, minimizando a queda, dando a entender que não tinha problema sorrir ou fazer piada. Parecia haver um pacto entre nós: precisávamos esquecer esses momentos. Na nossa casa, o riso também era uma ferramenta muito usada”. Desse modo, ela conduz a narrativa.

“Tenho pensado muito nessas coisas — no que carregamos conosco, no que nos mantém de pé perante as incertezas e em como encontramos e nos apegamos a nossas ferramentas, sobretudo em tempos de caos. Também venho pensando no que significa ser diferente. Fico perplexa com a quantidade de gente que luta contra a ideia de ser diferente”.

Outro aspecto relevante está na inclusão de um dos temas mais dolorosos da história americana, a pandemia da Covid-19, com mais de um milhão de mortos. “Duvido que naquela época alguém fosse capaz de imaginar a magnitude do que estava para acontecer. Quem conseguiria prever que a união de que desfrutávamos naqueles eventos estava, a bem da verdade, à beira da súbita extinção?”

Quem adivinharia, continua ela, que uma pandemia obrigaria a todos, “de uma hora para outra, a abrir mão de abraços casuais, sorrisos sem máscaras e interações tranquilas com desconhecidos? Pior ainda, que ela desencadearia um longo período de sofrimento, perdas e incertezas que chegaria a todos os cantos do mundo? Se soubéssemos disso, o que teríamos feito de diferente? Não tenho ideia”.

Michelle mostra generosidade e compaixão a um período que define como de tristezas, perdas e incertezas – que chegaram a cada canto do mundo à medida que a pandemia global se espalhava.

Se não bastasse, observa ela, tudo isso aconteceu em meio a uma onda de intolerância e preconceito, enquanto autocratas sedentos por poder fecharam o cerco em diferentes países. Talvez se tivesse restringido todo o volume ao período de 2020 para cá, seu livro se tornasse um documento precioso da história americana. E assunto ela teria de sobra para tratar.

O que se sabe, escreve a ex-primeira-dama, é que esses tempos deixaram todos hesitantes e inseguros. “Fizeram com que mais pessoas ficassem cautelosas, vigilantes, menos unidas. Muitas estão sentindo pela primeira vez algo que milhões e milhões de outras são obrigadas a sentir todos os dias: a sensação de desequilíbrio, de ausência de controle, e uma incerteza genuína em relação ao futuro.”

Para ela, embora a pandemia talvez tenha redefinido de maneira chocante os ritmos do cotidiano, manteve intocados males mais antigos, mais arraigados no povo americano. “Vimos pretos desarmados serem mortos pela polícia — ao saírem de uma loja de conveniência, a caminho da barbearia, durante patrulhas de trânsito.”

E vai além. “Vimos crimes de ódio infames contra americanos de ascendência asiática e membros da comunidade lgbtqiapn+. Presenciamos a intolerância e o fanatismo se tornarem cada vez mais aceitáveis, e autocratas com sede de poder fechando as garras sobre nações do mundo inteiro”.

Nos Estados Unidos, afirma ela, “um presidente se manteve imóvel”, enquanto policiais jogavam gás lacrimogênio em milhares de pessoas reunidas pacificamente em frente à Casa Branca para pedir por menos ódio e mais justiça.

“E depois de americanos comparecerem às urnas em massa para tirar esse presidente do cargo por meio do voto, de maneira justa e determinada, testemunhamos uma turba de rebeldes raivosos atravessando violentamente os ambientes mais sagrados de nosso sistema político, crentes de que tornavam nosso país grandioso derrubando portas e urinando no tapete de Nancy Pelosi”.

Michelle conta que se sentiu abalada, raivosa e até sem esperança em vários momentos nos últimos anos, além de insegura e confusa. "Mas quando o equilíbrio não é possível somos desafiados a evoluir... À medida que continuamos a navegar pelos desafios da pandemia, lidar com problemas de injustiça e instabilidade e nos preocuparmos com um futuro incerto, eu me pergunto se não seria a hora de pararmos de perguntar 'quando isso vai acabar?' e, em vez disso, começarmos a considerar um conjunto de perguntas diferentes e mais práticas que nos coloquem bem no meio do desafio e da mudança”.

Suas dúvidas são as mesmas de boa parte das pessoas em todo o mundo, sobre o caos de radicalismo que se expande e que não se deixam levar pela onda do extremismo. Ela pergunta: “como podemos nos adaptar? Como podemos ficar mais confortáveis, menos paralisados, em meio à incerteza? Que ferramentas temos para nos sustentar? Onde encontramos mais apoio? Como podemos criar segurança e estabilidade para os outros? Se trabalharmos todos juntos, o que conseguiremos superar?"

Quando Michelle descreve a sensação de solidão que teve às vésperas de seu discurso virtual na Convenção Nacional Democrata em 2020, em mais um momento crítico da Covid-19, ela comenta que a perseverança e a serenidade conquistadas pela prática do tricô – aprendido durante a pandemia – a ajudaram a chegar ao "tipo de clareza vulcânica que vem quando você fala do âmago do seu ser". E acrescenta: "Eu tinha que chegar no pequeno para conseguir pensar grande de novo".

Serviço:
Nossa luz interior – Superação em tempos incertos
Michelle Obama
256 páginas
Editora Objetiva
R$ 69,90/ 39,90 (e-book)