Chama-se Cypriano Camargo, tem 58 anos, um humor tímido e um jeitão professoral de dizer as coisas. Sua função é: olhar o caixa das empresas, bisbilhotar a operação, investigar as contas, conferir planilhas, zelar pelas boas práticas, observar procedimentos e condutas, cavoucar os números.
Seu papel é também o de conversar com os executivos, entender os executivos, orientar os executivos, conversar com os credores, entender os credores, ser o olhar dos credores sobre empresas em recuperação judicial ou em vias de se encrencar financeiramente.
Camargo não é auditor, ele vai logo avisando. “Auditor trabalha uma vez por ano na empresa, seguindo normas internacionais de contabilidade, não entra nesse detalhe operacional do caixa. Tá certo?”. Também não é consultor. “Seria conflitante com o que faço”.
Na definição formal, ele é um agente de monitoramento financeiro – o profissional que busca se certificar que os recursos de uma empresa sejam utilizados de forma correta, contratado por imposição judicial ou por acordo entre credores e empresas.
Ou, como ele mesmo prefere dizer, um watchdog, cão de guarda em bom português. “As pessoas ficam meio constrangidas em usar o termo, mas é isso mesmo: watchdog. Tenho até um canil na minha empresa”, ele brinca.
A empresa é a CCC Monitoramento. Começou prestando serviços de renegociação de dívidas de empresas médias a grandes enroscadas com problemas de liquidez pós-crise das hipotecas americanas (sub-prime) – era Camargo quem se sentava com os bancos – e acabou migrando para o monitoramento – judicial e não judicial.
Pelas lupas da CCC já passaram gigantes como PDG Realty, Odebrecht, Tecsis, Cotia Trading, EAS, Atvos. Algumas, ainda em processo de recuperação judicial, continuam na lista de Camargo. Outras, já resolveram suas pendengas e seguem a vida sem a vigília. Ainda há casos em que credores pedem a continuidade da atividade de watchdog – e as empresas aceitam - mesmo depois da reestruturação das dívidas. Prudência?
“Muitas vezes, mesmo eu estando fora da empresa, os executivos ou acionistas me procuravam para pedir conselhos informais”, conta Camargo. “As ocasiões em que aceitei, o fiz por relacionamento ou respeito ao vínculo criado, sem remuneração, quase como um toque, uma dica. Tá certo?”.
Na maioria das vezes, porém, há um certo “alívio” quando o watchdog sai da sala. Não se pode dizer que os executivos fiquem à vontade com alguém que está lá para monitorar todos os movimentos de caixa, as planilhas, o fluxo financeiro do negócio. A função de Camargo e equipe é avaliar os sinais vitais da empresa e levantar a mão – ou latir, como ele mesmo diz – quando algo está fora dos padrões.
E Camargo levantou a mão algumas vezes, sim. Como quando rastreou uma despesa de R$ 5 mil e descobriu se tratar de um almoço de negócios. No domingo. Ou quando pinçou, em mais de sete mil transações monitoradas de uma empresa em recuperação, uma movimentação suspeita de saques na boca do caixa. Seria dinheiro para o bolso dos acionistas, de modo a burlar limitações de remuneração, ou para propósitos não republicanos?
Ele rastreou uma despesa de R$ 5 mil e descobriu se tratar de um almoço de negócios. No domingo. Ou quando pinçou, em mais de sete mil transações monitoradas de uma empresa em recuperação, uma movimentação suspeita de saques na boca do caixa
“Não sei. Minha função é levantar a mão. Só. Daí por diante a conversa é com os credores ou, se for o caso, com a Justiça”, ele diz. No caso do almoço de faraó, a questão foi resolvida entre o próprio comilão e todos os credores da empresa reunidos no mesmo dia em uma mesma sala.
Chega-se ao ponto de ficar de olho no noticiário para verificar se, por exemplo, o dono de uma companhia em recuperação judicial está dando uma festa em Miami? Ou se o filho de empresário na mesma situação posou para uma foto com uma Porsche 718 zero quilômetro?
“Não vou atrás, mas se a notícia chegar aos meus ouvidos eu ligo o radar. E se o radar captar algo, levanto a mão”, diz Camargo. “Minha função é zelar pelo dinheiro dos credores. Se, de alguma forma, houver indícios de gastos com os recursos da empresa, seja qual for, eu tenho que avisar”. Certa vez, Camargo teve de pedir o extrato do cartão de crédito de um empresário. Já havia detectado movimentações estranhas e cruzadas com o cofre da companhia.
A experiência de décadas no mercado financeiro apurou o faro de Camargo para detectar “o que está fora de lugar”. Ele pulou do terceiro ano de Engenharia da Escola Politécnica para a graduação em administração na FGV, fez MBA pela Thunderbird, e construiu uma trajetória de sucesso em bancos como o Citi, Deustche, ABN-Amro (esteve antes e depois da compra do Real). Também foi diretor financeiro na Sulamérica Seguros. É um dos autores do projeto de autorregulação da Anbid, hoje Anbima.
“Costumo dizer aos executivos, aos financistas, o seguinte: ‘eu estive muito tempo do lado em que você está, sei de suas aflições, de suas responsabilidades, sobretudo nesse momento complicado, e conheço cada cantinho da operação. Vamos nos ajudar?’”, conta Camargo. “É uma forma sutil de avisá-lo que estou ali para observar tudo e mais um pouco. Tá certo?”.
A dinâmica do trabalho de um watchdog é quase sempre a mesma. Ao ser convocado ou contratado, Camargo se reúne com o top management da empresa – por isso a importância da senioridade na função – e passa os primeiros 90 dias no que se pode chamar de fase 1, a de imersão no negócio. Ele se senta com um ou dois dos principais executivos da companhia, geralmente CEO e CFO, e ouve, ouve, ouve, quase sem interrupções.
Foi em uma grande empresa em recuperação que, após a fase de imersão, ouviu do principal acionista e CEO, meio em tom de blague, a seguinte provocação: “E aí, aprendeu? Então explique para mim o que minha empresa faz e como eu devo agir? Vou reservar três horas amanhã para a sabatina”.
Camargo preparou um powerpoint de três telas, simples e pequeno, abriu o computador, apontou cinco indicadores críticos para o sucesso ou o fracasso do negócio e terminou dizendo ao CEO: “São esses aqui que eu vou observar, apenas eles. Acho melhor você começar a observá-los melhor também”. Ganhou o respeito do figurão.
Bem, mapeado o fluxo do dinheiro das empresas, entra em campo a equipe da CCC para o acompanhamento diário das operações estruturadas por Camargo, que sempre recebe os relatórios dos indicadores e movimentações.
Hoje, a empresa conta com 15 analistas, três deles voltados exclusivamente ao desenvolvimento de sistemas e softwares de monitoramento. “Imagine monitorar uma incorporadora como a PDG Realty. Sua holding tinha 812 empresas, 513 em recuperação judicial. Só se faz o trabalho com muita tecnologia”, diz Camargo.
Ao olhar, ouvir e entender cada cantinho da operação, o watchdog acaba dando grandes alertas para as companhias. Certa vez, Camargo comentou com um diretor financeiro que o caixa da empresa poderia sofrer se ele contraísse uma nova dívida, pois já havia um compromisso de curto prazo a vencer e o volume médio de entradas nos meses anteriores mal dava para quitá-lo. “É melhor não alavancar e chamar o quanto antes os bancos para renegociarem, né?”, afirmou o titubeante interlocutor. Camargo manteve-se olhando as contas.
Vale também para o outro lado. Um banco credor havia feito uma amortização indevida, não prevista no plano de recuperação de uma empresa que estava em dificuldades, contando moedas. Foi um erro operacional. Camargo levantou a mão, desta vez para o banco. Telefonou e pediu que a instituição reembolsasse a empresa. A empresa e os demais credores agradeceram, penhoradamente.
O setor das empresas de monitoramento é pequeno, reúne não mais do que sete empresas, a maioria como um braço das consultorias, operando em nichos como o acompanhamento de projetos na construção civil ou de safras agrícolas. “A única empresa voltada 100% ao monitoramento financeiro para todas as áreas é a CCC. Esse é ainda um mercado muito novo no Brasil”, comenta Camargo.
Nos Estados Unidos, com sua lógica litigiosa nos casos envolvendo recuperações judiciais, a atividade é entregue, geralmente, aos grandes escritórios de advocacia. Mas isso é só lá. Por aqui, as firmas se atêm à nomeação do administrador judicial. Não se deve confundir – um erro bem comum – com o watchdog. O administrador é indicado por lei para garantir o cumprimento do plano de recuperação judicial.
Na Europa, os próprios bancos se encarregam de contratar prestadores autônomos de serviço para monitorar empresas e projetos – sobretudo as Parcerias Público Privada. “Seria uma boa ter por aqui também a figura do watchdog nas PPPs, dada a natureza do negócio”, diz Camargo. “Quanto mais frentes de monitoramento, mais buscas para os cães de guarda. Tá certo?”.
Camargo diz que sua atividade, aos poucos, vem crescendo – o que não é exatamente uma boa notícia para a economia -, mas não revela o quanto isso representa em números e receitas para a CCC Monitoramento. É o único caixa que ele prefere manter fechado.