Aos olhos do FBI, Martin Luther King (1929-1968) era um homem perigoso, um apoiador secreto do comunismo e um “voyeur” de estupros. Pelo menos é o que diz um relatório, feito nos anos 60 e mantido em sigilo até 2017, sobre o vencedor do Prêmio Nobel da Paz.

Os arquivos sugerem até certa obsessão do poderoso J. Edgar Hoover (1895-1972) pelo ícone do movimento negro. O então diretor do Departamento Federal de Investigação dos EUA não só mantinha King sob vigilância como comandava campanha para manchar o seu nome.

“Hoover tentou de tudo para desacreditar King e o seu papel na defesa dos direitos civis”, contou o cineasta americano Sam Pollard. Ele é o diretor do documentário “MLK/FBI”, que resgata a vigilância e o assédio sofridos por King, a partir de 1963, quando foi iniciada a escuta telefônica.

Exibido na recém-encerrada 45ª edição do TIFF, o Festival Internacional de Cinema de Toronto, o filme é baseado nesses relatórios do FBI. Pollard teve acesso aos arquivos ao recorrer à Freedom of Information Act, lei que força o governo dos EUA a fornecer informações sobre a administração pública.

O material sobre o ícone da luta contra a segregação racial faz parte da leva de documentos secretos aberta por determinação do presidente Donald Trump, em outubro de 2017. Os ficheiros guardados no Arquivo Nacional incluíam relatórios sobre o assassinato de John F. Kennedy.

Pelos registros feitos pelo FBI e mostrados no filme (ainda sem data de estreia no Brasil), King era visto como um vilão. Alguém que precisava urgentemente ser “neutralizado”. “Hoover tinha medo de King, que era uma figura notória”, disse Pollard, de sua casa em Nova York, em evento online que teve cobertura do NeoFeed.

“Muitos americanos tinham medo do que acontecia nos anos 50 e 60 nos EUA, com a evolução do movimento pelos direitos civis (que tinha King como um de seus líderes). Eles achavam que King desestabilizaria a noção do que significava ser americano naquela época”, contou o diretor.

Para Andrew Young, ativista e amigo de King que dá depoimento no documentário, a histórica Marcha de Washington agravou a perseguição ao líder. O discurso “I have a dream” (Eu tenho um sonho), diante de 250 mil de pessoas, em 28 de agosto de 1963, possivelmente foi a gota d’água para Hoover.

O FBI grampeou os telefones de King e de seus aliados, colocou microfones em sua casa e levou a escuta até nos quartos de hotel onde ele se hospedava. As gravações eram feitas na esperança de o departamento descobrisse algo que pudesse ser usado contra o ativista.

O pôster do documentário

“Primeiro eles tentaram associar King ao Comunismo, pelo fato de seu assessor, Stanley Levison, ser um ex-comunista”, afirmou Pollard, mais conhecido como editor de filmes de Spike Lee, incluindo “Febre da Selva” (1991).

A intimidade de King também foi usada para destruir a sua reputação. “Perceberam, pelas escutas telefônicas, que o líder não era um homem monogâmico. Tentaram então derrubá-lo por ele ser um pastor batista que tinha casos amorosos”, disse o documentarista.

Pelas contas do FBI, King teve mais de 40 mulheres, informação que usaram para humilhá-lo e chantageá-lo. Muito do que o departamento descobria sobre o líder era enviado de forma anônima aos veículos de comunicação.

King também recebia cartas ameaçadoras de membros do departamento que tentavam se passar por negros, na maneira como escreviam. Uma carta chegou a sugerir que o ativista cometesse suicídio, para evitar que certas gravações comprometedoras fossem divulgadas.

Em depoimento dado a Pollard, para o documentário, James Comey, ex-diretor do FBI (função que exerceu de 2013 a 2017), condenou as artimanhas empregadas na época. E ainda descreveu o período como o mais “obscuro da história do bureau”.

“Todos sabemos que King não era um anjo. Era um ser humano com fraquezas”, afirmou Pollard, para quem a vida privada do ativista pouco importa. “Isso não muda quem ele foi, o que fez pela integração dos negros e o impacto que teve na história americana nos anos 50 e 60. Sabemos que homens como King e John F. Kennedy tiveram vidas amorosas intensas e complexas.”

https://www.youtube.com/watch?time_continue=11&v=f8HoXQfuImE&feature=emb_title

Uma das alegações mais perturbadoras encontradas nos relatórios do FBI diz respeito a um estupro. Um pastor teria atacado uma mulher em quarto de hotel, cena que King supostamente teria testemunhado por ser amigo do agressor. Mas não há prova disso. A tal gravação que poderia confirmar o ocorrido ainda é confidencial.

Ainda que os documentos tenham sido abertos, as gravações ligadas à vigilância de King continuam sigilosas até 2027 no Arquivo Nacional dos EUA. Por decisão do Tribunal de Justiça, datada de 1977, o conteúdo das fitas sobre o ativista só poderá ser divulgado 50 anos depois.

“É triste perceber que, por mais que pensássemos ter aprendido algo nos EUA, a nossa história sempre se repete”, afirmou Pollard. A situação foi agravada este ano com a morte de negros por policiais, como George Floyd, Breonna Taylor e Rayshard Brooks, gerando protestos.

“Em 2020, os EUA passam pelo mesmo que King enfrentou na década de 60. Pessoas são vigiadas e líderes como King são vistos como causadores de tumultos”, disse o cineasta.

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