Uma mulher caminha com uma trouxa na cabeça, ao lado de um homem com uma mala na mão e duas crianças. Essas são as primeiras pessoas que fazem parte de um grupo que parece se distanciar da silhueta da cidade que deixam para trás.
A cena está pintada na tela "The Exodus" (1928), do artista americano Robert Spencer, e retrata os Estados Unidos que não estamos acostumados a ver nos filmes de Hollywood, muito menos nas telas dos ícones das pinturas americanas como Jackson Pollock, Roy Lichtenstein e Jasper Johns.
A mostra "Pelas ruas: vida moderna e experiências urbanas na arte dos Estados Unidos. 1893-1976", que abre neste sábado, 27, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, propõe uma reflexão sobre sobre a modernidade a partir das transformações das cidades vistas por seus artistas.
"A nossa proposta é enfatizar que há outras histórias além da abstração e o expressionismo abstrato. Mostrar um repertório um pouco mais amplo, como os artistas que estavam olhando para o que está acontecendo na vida cotidiana das pessoas e como aquilo alimentava a arte", explica Valéria Piccoli, curadora-chefe da Pinacoteca, ao NeoFeed.
A exposição apresenta 150 obras de 78 artistas vindas de 16 importantes instituições culturais americanas como o Whitney Museum of American Art e o International Center of Photography, de Nova York; o Los Angeles County Museum of Art, de Los Angeles; e o Museum of Contemporary Art Chicago, de Chicago.
Esse volumoso intercâmbio de obras foi costurado em parceria com a instituição Terra Foundation for American Art, que também empresta obras à mostra brasileira – a primeira grande internacional da Pinacoteca desde o início da pandemia de Covid-19, em 2020.
A exposição, contudo, não deixa os clássicos de fora. Entre os medalhões presentes estão a gravura "Night Shadows" (1921) e a tela "Dawn in Pennsylvania" (1942), de Edward Hopper, que exemplificam suas tradicionais temáticas ligadas à solidão e melancolia das paisagens urbanas. O ícone Andy Warhol marca sua presença com uma gravura de 1965 menos conhecida entre os brasileiros, sobre um episódio de violência policial ocorrido no estado do Alabama.
Universal para quem?
O número expressivo de obras abarca também um longo período histórico de 83 anos. Começa em 1893, ano da Feira Mundial de Chicago, que aconteceu nos Estados Unidos e recebeu o nome de World's Columbian Exposition, em comemoração aos 400 anos da chegada do de Cristóvão Colombo às Américas.
O evento marca a primeira vez em que o Brasil se apresentou internacionalmente como um país republicano e alinhado com os valores políticos americanos. Na mostra, a comissão brasileira apresentou algumas obras de arte. Entre elas, "A Leitura" (1892), de Almeida Júnior, que faz parte do acervo da Pinacoteca. Mas não só.
A primeira sala da atual exposição, chamada "Cidade Branca", tenta reconstituir o que foi este grande evento por meio de fotografias e pinturas. "Em uma mostra que se pretende universal, você já nota uma ideia de segregação. Nos edifícios de arquitetura neoclássica, ficava o que era considerado civilizado [produtos, maquinários].
Em outros, o que se julgava curioso e exótico", relata Piccoli. Pessoas com roupas de danças típicas do folclore brasileiros, grupos de tribos africanas ou de esquimós, por exemplo, entravam neste segundo critério.
A partir da alegoria dessas grandes feiras, a exposição reflete a proposta de vida urbana dos Estados Unidos em que "supõem que todo mundo é igual, mas não", ressalta a curadora.
A fim de apresentar também uma visão americana menos conhecida do público brasileiro, a curadoria teve uma preocupação em trazer principalmente trabalhos de artistas mulheres e afrodescendentes, como Charles White, Emma Amos, George Nelson Preston, Jacob Lawrence, Horace Pippin e Vivian Browne.
"São artistas que não estão muito no nosso repertório, mas podem ajudar a pensar o nosso próprio contexto cultural. Essa ressurgência relativa aos afrodescendentes e indígenas que a gente está vivendo agora, de certa forma, os Estados Unidos antecipam nos anos 1960 e 1970", aponta.
Datas de reflexão
A mostra vai até 1976, celebração do bicentenário da independência dos EUA. "A gente queria costurar esse ambiente americano com a história brasileira e trazer algumas referências que pudessem criar uma conexão entre essas duas histórias", explica.
Aproveitando as reflexões suscitadas pelas comemorações dos 100 anos da Semana de Arte Moderna e do bicentenário da Independência do Brasil, a mostra pretende questionar: após os Estados Unidos assumirem o protagonismo cultural no século 20, quais ideias de modernidades são importadas abaixo da linha do Equador?
Os últimos trabalhos apresentados na mostra retratam a efervescência vivida pelos Estados Unidos nos 1970, com as marchas pelos direitos civis da comunidade LGBTQIA+, de mulheres e negros.
"É uma geração que está propondo imaginar outras maneiras de se viver dentro da cidade. Uma mensagem importante para este momento é que nós, brasileiros, precisamos reimaginar o nosso país – como podemos viver melhor todos nós juntos?", propõe.
Após a visita à mostra "Pelas Ruas", Piccoli incentiva os visitantes a pegar a escada ao lado da saída da sala e subir até o acervo da Pinacoteca para olhar os trabalhos feitos no Brasil na mesma época. "Podemos circular depois pela coleção do museu para ver as semelhanças e diferenças que marcaram a nossa história e a dos Estados Unidos. Fazer uma visita ao acervo mundo é bastante complementar à exposição."