Imersos em uma nuvem tóxica, 20 milhões de habitantes de Nova Delhi, a capital da Índia, passaram por dias de terror em novembro. Escolas e aeroportos foram fechados, obras foram paralisadas e o trânsito de veículos, interrompido. Os medidores de poluição do ar marcavam 999 ppm (sigla para parte por milhão, que define a concentração do nocivo monóxido de carbono no ambiente), o popular gás carbônico. Mas as autoridades indianas não sabiam se o dado era real porque 999 ppm é o máximo que um medidor registra. A Organização Mundial de Saúde recomenda como seguro não ultrapassar cerca de 25 ppm.
Enquanto isso, a Grande São Paulo que tem quase a mesma população registrava cerca 29 ppm. Mas o índice já chegou a 80 nos anos 2000. “O que mudou nesse tempo em que a frota de veículos foi multiplicada e o índice de poluição do ar veio a um terço do que era, foi o uso dos biocombustíveis”, diz Jacyr Costa Filho, presidente do Conselho Superior do Agronegócio (Cosag), da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, e CEO da cooperativa francesa Tereos na Região Brasil, ao NeoFeed. “Caso o Brasil usasse somente combustível fóssil, hoje a poluição em São Paulo seria de 200 ppm.”
O ar paulistano é um recorte do que passa a ser uma política oficial do governo federal a partir do dia 24 de dezembro. A data representa um marco para o Brasil porque entra em vigor a Política Nacional de Biocombustíveis, chamada RenovaBio. Ela coloca valor e monitora a matriz energética a partir de recursos limpos e renováveis – no caso o etanol e o biodiesel. Mas o que é o RenovaBio, de fato? De onde ele surgiu?
O Brasil assumiu dois compromissos perante o mundo em 2015, na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, no chamado Acordo de Paris. O primeiro seria conter o desflorestamento, tendo como base as regras estabelecidas pelo Código Florestal de 2012. O segundo seria um programa de descarbonização do meio ambiente, que significa emitir na natureza menos gases de efeito estufa, sendo o gás carbônico (CO2) o principal deles.
O RenovaBio é justamente isso: um mecanismo de descarbonização, através do uso de energias renováveis na matriz energética para o setor de transporte. No Acordo de Paris ficou acertado que as medidas a serem tomadas pelos 195 países signatários, visando a redução de gases nocivos, entraria em vigor a partir de 2020. Para o governo brasileiro, o uso de mais etanol, biodiesel e bioeletricidade pode impulsionar a economia do País.
Essa é base econômica do RenovaBio. Projeções da Empresa de Pesquisa Energética, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, apontam investimentos da ordem de R$ 1,4 trilhão no setor até 2030. E não são apenas as usinas de cana-de-açúcar, biodiesel e distribuidoras que apostam nesse mercado. A japonesa Toyota do Brasil, por exemplo, já anunciou que vai investir R$ 1 bilhão para produzir carros híbridos-flex, movidos a eletricidade e etanol.
Além dos investimentos, um dos mecanismos do RenovaBio prevê o comércio de créditos carbono através dos CBIOs (Créditos de Descarbonização), ativo financeiro que valora o sequestro de carbono na natureza. Ao contrário de uma floresta, na qual a emissão e o sequestro carbono praticamente se equivalem, nas lavouras acontece justamente o contrário.
Para que a cana cresça, ou mesmo outras culturas como soja ou pasto para o gado, ela precisa de gás carbônico, luz e água. No processo de fotossíntese, a planta em crescimento sequestra mais carbono do que emite. E há mecanismos científicos de medição, com certificados reconhecidos globalmente. É isso que vira crédito para serem negociados no mercado.
Uma unidade de crédito de carbono corresponde a uma tonelada de CO2. Os créditos de carbono, com possibilidade de comércio entre empresas de países diversos, foram criados nos anos 1990, depois da Rio92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, na primeira tentativa global de se estabelecer metas de redução de gases na atmosfera.
Lição de casa
As bases do RenovaBio foram lançadas em 2016 e desde então elas vêm sendo estruturado. Para Evandro Gussi, presidente da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica), o grande papel é vender ao mundo a política do etanol. “O País tem como reduzir as emissões de poluição e tem solução testada há 40 anos”, diz ele, se referindo ao Próalcool, lançado em 1975 e que marca o início da corrida pelo combustível de cana.
“O País tem como reduzir as emissões de poluição e tem solução testada há 40 anos”, diz Gussi, da Unica
Gussi esteve em Madrid, no início deste mês, na 25ª Conferência do Clima (COP 25), a reunião anual dos signatários do Acordo de Paris. “Nos convertemos em um dos maiores serviços de redução de emissões de CO2 do mundo”, disse Gussi em uma das conferências do evento. “O etanol pode reduzir as emissões em até 90% na comparação com a gasolina. Além disso, hoje ele já é responsável por 17,4% da matriz energética nacional.”
De acordo com o executivo, há cerca de 60 países que estudam ou já incorporaram o etanol na matriz energética. No grupo estão mercados como o dos Estados Unidos, com o etanol de milho, além da própria Índia e da China.
Segundo o Global Carbon Project, projeto de pesquisa criado em 2001, com sede na Austrália, as emissões globais dos combustíveis fósseis e da indústria vêm aumentado a cada década, de uma média de 11,4 bilhões de toneladas nos anos 1960, para a média de 34,7 bilhões de toneladas entre 2009 e 2018.
No ano passado, o recorde foi de 36,6 bilhões de toneladas de CO2 equivalente, emitidas na natureza, das quais 40% vieram do carvão, 34% do óleo diesel, 20% do gás, 4% do cimento e o restante de cerca de 1% por queimadas. Para este ano, as emissões globais devem aumentar 0,6%, de acordo com a entidade.
O RenovaBio entra justamente nesse flanco de acesso por ser um programa de descarbonização do ambiente, para que o aumento da temperatura média global fique "abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais". Mas o ideal seria 1,5%, segundo pesquisas. A cana-de-açúcar coloca o Brasil nesse círculo virtuoso, ao atrelar a produção ao compromisso de limpar o ar que respiramos.
Neste ano, o sequestro de carbono no País deve ficar em 16,8 milhões de toneladas de CO2 equivalente. A meta é chegar em 2028 com 90,1 milhões de toneladas. Isso significa que, ao longo da década, o setor tem potencial para responder por uma economia de 590,8 milhões de toneladas de CO2 equivalente.
Neste ano, a região centro-sul do Brasil, que responde por 90% da moagem de cana, deve produzir 33,1 bilhões de litros. Em 2028, a previsão é de 37,2 bilhões de litros. Mas, para chegar à economia de CO2 almejada, o País precisaria acelerar e chegar a 2030 com 50 bilhões de litros.
No caso do biodiesel, a tarefa é economizar no uso do diesel fóssil. Em 2018, o governo concedeu R$ 85,1 bilhões em subsídios para o uso de petróleo, carvão mineral e gás. Somente de diesel de petróleo foram 11,6 bilhões de litros importados. No mês passado, as compras bateram recorde histórico para o período. Desembarcaram nos portos brasileiros 1,91 bilhão de litros de diesel.
Com o uso de biodiesel no diesel, que desde setembro passou de 10% para 11% da mistura -- mas já está liberado uma mistura de até 15% --, a estimativa do MME é que haja uma economia de até US$ 1,3 bilhão ao ano, até 2023. A partir de soja, sebo de boi e outros subprodutos, a produção de biodiesel passaria dos atuais 5,4 bilhões de litros anuais para 10 bilhões nos próximos três anos.
Costa Filho, da Cosag e da Tereos, diz que o setor pode responder à demanda de maior produção, tanto de biodiesel como de etanol. Ele dá como exemplo o desenvolvimento tecnológico. No caso da cana, com o uso da agricultura de precisão e com a pesquisa intensiva em busca de variedades mais produtivas. “O maior centro de pesquisa de cana do mundo está em Piracicaba, que é o Centro de Tecnologia Canavieira”, diz ele.
O centro, por exemplo, já lançou uma variedade de cana geneticamente modificada e tem outra variedade no pipeline. “O RenovaBio é um projeto que visa a valorizar ainda mais o ambiente e traz inovações tecnológicas não apenas no sentido de minimizar o uso de combustíveis fósseis na produção, mas também o de fertilizantes químicos, principalmente os nitrogenados, o que vai levar a mais investimentos em pesquisa para tornar o etanol ainda mais competitivo.”
Há ainda o etanol de milho. Até 2023, a previsão é de que 15 usinas nos Estados de Mato Grosso e Goiás estejam em atividade, produzindo cerca de 3 bilhões a 3,5 bilhões de litros por safra. Neste ano, o País está produzindo 1,5 bilhão de litros.
Valor no campo
A multinacional alemã Bayer, que no ano passado faturou 39,6 bilhões de euros e que no agronegócio atua no País através da Divisão de Crop Science Brasil, investe globalmente 2,4 bilhões de euros em pesquisa, por ano. No Brasil, um dos principais focos da empresa é a soja. E tem sentido.
A safra 2019/2020 está prevista em 120,4 milhões de toneladas, 4,7% acima da anterior. Para biodiesel serão destinados neste ano 20,5 milhões de toneladas e, em 2020, serão 25 milhões de toneladas do grão. Mas o agrônomo Gerhard Bohne, presidente dessa divisão, não descarta a cana-de-açúcar.
Mesmo sendo uma cultura basicamente brasileira, ela faz parte do desenvolvimento de tecnologias da companhia. “Combustíveis não fósseis é uma tendência global”, afirma Bohne ao NeoFeed. “O RenovaBio vem fortalecer essa tendência de energias mais limpas e estamos investindo na cana-de-açúcar.”
Há dois anos, a Bayer tem levado ao campo uma plataforma de monitoramento digital para a gestão da lavoura. Desenvolvida nos Estados Unidos para o algodão, ela aqui ganhou relevância nas culturas de milho e da soja. Mas, no último ano, a cana entrou no radar.
Do total de 7 milhões de hectares monitorados, 1,5 milhão de hectares já são de cana. “Foi uma surpresa”, diz ele. “O Brasil possui 10 milhões de hectares cultivados. Então, temos um exemplo fantástico de mercado que demanda por tecnologia.”
Em um setor como a cana, que passou por altos e baixos nas últimas décadas, é difícil avaliar qual o real apetite das usinas por investimentos. A estimativa com o pleno funcionamento do RenovaBio é de algo em torno R$ 9 bilhões por ano, especialmente com a renovação de canaviais. Outros R$ 4 bilhões viriam com o aumento da produção.
Mas o mercado mais esperado nesse sentido são justamente os CBIOs, os Créditos de Descarbonização. As usinas de cana, eficientes no sequestro de carbono, podem emitir os títulos e as distribuidoras de combustíveis podem comprá-los e revendê-los no mercado de crédito de carbono.
De acordo com o “State and Trends of Carbon Pricing 2019", relatório publicado pelo Banco Mundial, apenas 20% das emissões globais de CO2 possuem alguma precificação de carbono e menos de 5% estão em níveis condizentes com as metas globais do Acordo de Paris.
Até 2030, a previsão é que o RenovaBio reduza as emissões de gases em 10,1%, ou seja quase 1/3 do compromisso assumido em Paris. O mercado de CBIOs, com possibilidade de venda de créditos de carbono, começa a funcionar no dia 1º de janeiro de 2020.