Logo nos minutos iniciais do documentário “Salvatore: Shoemaker of Dreams”, o narrador recorre a trechos do livro de memórias que o “sapateiro dos sonhos” publicou em 1957. É como se o ator/narrador Michael Stuhlbarg procurasse traduzir a essência do italiano Salvatore Ferragamo (1898-1960), nas palavras do próprio.
“Eu amo pés. Eles falam comigo”, escreveu o estilista em “Shoemaker of Dreams: The Autobiography of Salvatore Ferragamo”. “Ao segurá-los, sinto suas forças, suas fraquezas, sua vitalidade ou suas deficiências. Um bom pé, com seus músculos firmes e seu arco forte, é uma delícia de tocar - uma obra divina”, continuou ele.
É assim que Ferragamo e, por consequência, o documentário explica como nasceu o seu “impiedoso e implacável” desejo de trabalhar com os pés. “Isso tomou conta de mim quando eu ainda era um menino em uma aldeia remota do sul da Itália, a 90 quilômetros a leste de Nápoles”, contou o sapateiro, em sua autobiografia.
Dirigido pelo compatriota Luca Guadagnino, o filme revisita a trajetória pessoal e profissional daquele que possivelmente foi o maior designer de calçados de todos os tempos. Não é exagero quando os especialistas dizem que os “sapatos nunca mais foram os mesmos depois de Ferragamo”.
Além da criatividade no design, o sapateiro fazia calçados confortáveis graças aos seus estudos sobre a anatomia do pé. É essa sua genialidade que o documentário tenta desvendar. Ainda sem data para estrear no Brasil, “Salvatore: Shoemaker of Dreams” fez a sua première mundial no Festival de Cinema de Veneza, encerrado ontem, na Itália.
“Desde muito cedo, Ferragamo demonstrou determinação, energia criativa e um senso de aventura sem precedentes”, contou o cineasta Guadagnino, referindo-se ao empreendedorismo precoce do sapateiro. Não à toa, criou um império, uma marca global que faturou 1,37 bilhão de euros em 2019 e passa pelos sapatos, acessórios, roupas e perfumes.
Vindo de família humilde, com 14 filhos, Ferragamo confeccionou, ainda menino, sapatos brancos para que a irmã usasse na primeira comunhão. Aos 12 anos, ele abriu sua primeira “loja”, em frente da casa onde a família morava, em Bonito, cidadezinha onde nasceu.
“Ferragamo tinha apenas 14 anos quando se mudou para os EUA. E aos 20, já confeccionava botas para Cecil B. DeMille”, comentou Guadagnino. O diretor se refere aqui às criações que o sapateiro realizou para produções como “Os Dez Mandamentos” (1923) e “Rei dos Reis” (1927), assinados por DeMille.
Durante evento online, Guadagnino contou, de sua casa, em Milão, que levou dois anos para desenvolver o documentário, com a ajuda da roteirista Dana Thomas. Com cobertura do NeoFeed, a sua “Masterclass” (aula) foi uma das atrações desta 45ª edição do TIFF, o Festival Internacional de Cinema de Toronto, que segue até o dia 19.
“O documentário foi um projeto que caiu meu colo”, afirmou o cineasta, que foi contratado pela família de Ferragamo para rodar o filme, inspirado na autobiografia. “Como o livro foi escrito pelo sapateiro, com a ajuda de dois roteiristas que trabalharam com Alfred Hitchcock, há algo de hollywoodiano na narrativa, o que me interessou muito”, completou.
O roteiro do documentário foi construído a partir de material fornecido pela Fondazione Salvatore Ferragamo e pelo museu que também leva o nome do designer. Cenas inéditas realizadas em Super 8 feitas pelo próprio Ferragamo no início do século 20 são alternadas com imagens atuais das fábricas da marca, que explicam como os sapatos são feitos.
Depoimentos com familiares e personalidades do mundo da moda e do cinema também ajudam a estruturar o filme. Participam o diretor Martin Scorsese e os designers Manolo Blahnik e Christian Louboutin, além dos filhos e dos netos, que falam da obsessão de Ferragamo por calçados. Há ainda material de arquivo com a esposa do sapateiro, Wanda Miletti, que morreu em 2018.
Gravações em áudio do próprio Ferragamo, lendo em voz alta os capítulos de sua autobiografia, também costuram a narrativa. Toda a jornada do sapateiro é explorada, passando pela fase de aprendiz e pela incursão em Hollywood, onde criou sapatos para os figurinos de filmes. Ele também calçou estrelas como Marilyn Monroe, Audrey Hepburn, Ava Gardner, Sofia Loren e Greta Garbo.
A trajetória inclui o seu regresso à Itália no final da década de 1920, depois de 13 anos nos EUA. Foi em Florença que Ferragamo fixou residência, abriu a grife de luxo, alcançou o sucesso como empresário e continuou calçando celebridades.
Um exemplo foi a criação, em 1938, da sandália plataforma Rainbow, que Ferragamo fez especialmente para atriz Judy Garland, inspirado nas listras do arco-íris. Foi a homenagem do sapateiro à estrela, que interpretou Dorothy no clássico “O Mágico de Oz” (1939) e cantou a música “Over the Rainbow”, .
Em termos de inovações, além do salto plataforma, Ferragamo também ficou conhecido pelo uso da cortiça nos calçados, pela criação do salto anabela e pela ousadia nas cores – fugindo dos tradicionais preto, branco e bege. Em sua autobiografia, o sapateiro afirmou ter registrado 350 patentes.
“Esse tem sido o trabalho da minha vida: a luta para aprender a fazer sapatos que sempre sirvam e a recusa em colocar o meu nome em qualquer um que não sirva”, resumiu o próprio, em suas memórias.
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