Este é o sexto e último artigo da série Inteligência Artificial (IA) aplicada à saúde. Visualizar uma medicina no futuro é um exercício de imaginação, mas podemos identificar sinais dispersos, que, se conectados, apontem para uma direção.
Com certeza, a maior digitalização da medicina; a telemedicina: o uso massivo da IA (o novo estetoscópio); a personalização; o foco na saúde e não na doença; e o monitoramento contínuo e não visitas pontuais ao médico, parecem ser sinais claros, que se combinados, podem nos mostrar uma visão de futuro consistente.
Podemos chegar a um nível de destruição criativa que nos permita imaginar uma medicina sem hospital? Pelo menos em um horizonte previsível salas de emergência, cirurgia e UTI continuarão existindo, mas quanto às outras atividades hospitalares? Bem, já existe experiência nesse sentido.
O Mercy Virtual Care Center nos EUA é um hospital virtual. Tem médicos e enfermeiras, mas não tem leitos. Os pacientes não ficam internados e o uso massivo de IA ajuda a monitorar cada paciente em suas casas e alertar os médicos quanto às variações de seus sinais vitais.
Vale a pena dar uma olhada no artigo “A hospital without patients” e talvez tenhamos um vislumbre de um cenários de possíveis hospitais do futuro. Na prática, um modelo intermediário, chamado Hospital at Home (HaH), com parte do atendimento hospitalar efetuado em casa, já está bem posicionado em países como Reino Undo, Israel, Canadá, EUA e Austrália e está sendo impulsionado em outros países pela pandemia da Covid-19.
Um estudo feito na Austrália mostrou que lá cerca de 6% dos dias hospitalizados já são em casa, no modelo HaH, e que, cerca de 60% dos pacientes com trombose venosa profunda são tratados em casa. Existem barreiras culturais, como o artigo “Hospital at Home" Programs Improve Outcomes, Lower Costs But Face Resistance from Providers and Payers” mostra, mas a pandemia tem derrubado estas resistências. Provavelmente no “novo normal”, pós-Covid, o processo de transformação da medicina seja acelerado.
Mas não vamos tão longe ainda. Voltemos ao presente e as ferramentas digitais que dispomos. Os smartphones, que já são 3,5 bilhões em uso hoje provavelmente chegará a 3,8 bilhões no próximo ano, o que significa que metade dos 7,5 bilhões de habitantes do planeta possuirão um dispositivo desses no ano que vem.
O smartphone é o canivete suíço da medicina e pode passar a ser rotina matinal você deixar que ele analise sua voz; avalie seu nível de estresse com base em uma varredura facial; verifique seus sinais vitais; e lembre você para tirar uma foto dessa verruga em seu antebraço, a fim de detectar qualquer anomalia, antes que se torne mais grave.
O smartphone é o canivete suíço da medicina e pode passar a ser rotina matinal você deixar que ele analise sua voz
Com uso de IA, as câmeras deixam de ser apenas para fotos para postar no Instagram, mas podem analisar lesões na pele. E a gravação de voz não é apenas para perguntar ao Siri sobre o clima, mas também pode detectar a doença de Alzheimer.
Aplicativos como ResApp Health podem monitorar sua respiração e detectar problemas com bastante precisão: “New ResApp data shows ~90 percent accuracy when diagnosing range of respiratory conditions”. Isso tudo pode ser tão rotineiro quanto abrir o WhatsApp para ver as últimas mensagens.
Os smartwatches, smartphones e os assistentes virtuais, como Echo e Google Home, devem exercer papel mais preponderante na saúde. A interação por voz é uma maneira bem mais fácil e humana que teclar mensagens. A evolução e o aprimoramento dos algoritmos de NLP (Natural Language Processing) fazem com que estes dispositivos fiquem cada vez mais similares em interação verbal, a nós humanos.
O artigo “Alexa, Understand Me” mostra que isso não é ficção, mas realidade. À medida que os assistentes virtuais se tornem tão comuns quanto aparelhos de TV, isso provocará uma mudança de hábitos que irá requerer novos aprendizados e cuidados. Vejam o instigante “When your kid tries to say ‘Alexa’ before ‘Mama’” e devemos refletir que as crianças de hoje viverão daqui a vinte anos em um mundo onde RA/RV e IA serão tão comuns quanto eletricidade e que as diferenças entre os mundos reais e virtuais ficarão fluídas. Será um mundo diferente do nosso.
Toda essa tecnologia digital e a IA farão diferença se conseguirmos melhorar a prática médica na sua totalidade e isso implica necessariamente na melhoria da relação paciente-médico. Hoje a relação é meio conturbada, pois o médico gasta a maior parte do escasso tempo de consulta em atividades robotizadas, como analisando e digitando os resultados dos exames solicitados e prescrevendo novos exames. Pouco tempo é investido na relação humana.
Toda essa tecnologia digital e a IA farão diferença se conseguirmos melhorar a prática médica na sua totalidade
A tecnologia digital e a IA poderão eliminar as tarefas robotizadas, ou seja, tirar o robô de dentro do médico e fazer com que ele tenha mais tempo para ouvir e conhecer o paciente, tenha empatia e consiga realizar os exames físicos (aquele toque humano) necessários, de forma mais adequada, não apenas com estetoscópios, mas também com smartphones e sensores portáteis.
A IA não vai substituir o médico. As tarefas humanas são essenciais. Eu não gostaria de saber que tenho uma doença grave, como um câncer, por um assistente virtual. Ele não teria empatia para entender o alcance desta informação.
A tecnologia digital e a IA deverão atuar no sentido de humanizar a medicina e não aumentar sua desumanização. O sistema de saúde como um todo é impulsionado para desumanizar o atendimento. O sistema faz com que os médicos sejam robôs de prescrição de medicamentos, em consultas cada vez mais rápidas; os hospitais são frios e insensíveis; e os planos de saúde burocráticos e voltados à redução de custos e aumento da eficiência, e não à saúde dos seus clientes.
A tecnologia digital IA pode transformar profundamente a medicina. Pode dar tempo aos médicos, eliminando deles as tarefas robotizáveis e através de sensores espalhados pelos smartphones e assistentes virtuais, monitorar cada paciente individualmente.
Assim, em vez de irmos ao consultório para uma visita de rotina, que muitas vezes é apenas levar um exame e sair de lá com a prescrição de outro, meu médico terá acompanhamento contínuo da minha saúde e será alertado quando alguma anomalia for detectada.
A consulta será para os casos de exceção e não simples rotina. O tempo que eles gastam hoje em atividades robotizáveis poderá se transformar em tempo de atenção e toque humano. Com mais tempo disponível na consulta, o médico poderá fazer o que o distinguirá das máquinas: ser humano. E ser humano, significa ter empatia, conhecer a pessoa que é o paciente.
A IA não é inteligente. Ela não tem senso comum. Não tem empatia (sim, pode reconhecer sinais das emoções humanas e simular empatia, mas não é a verdadeira empatia) e isso faz uma grande diferença.
Isso vai nos obrigar a rever a formação do profissional de medicina. Atualmente a empatia é desestimulada. Para entender o comportamento dos médicos é necessário conhecer um pouco o caminho de formação do profissional. Os médicos brasileiros têm uma jornada difícil rumo ao seu diploma. No seu processo de formação, pouco se fala sobre a humanização da saúde, ou seja, o curso de medicina não ensina o médico a ser humano, ser sensível à dor alheia e ter empatia.
Durante a formação acadêmica, os médicos são incentivados a não demonstrarem sentimentos. O objetivo é manter um distanciamento emocional dos pacientes, como forma de não se envolver afetivamente com as histórias. Assim, o médico é treinado para não prestar atenção ao sofrimento humano causado por mortes, doenças, tratamentos difíceis e traumas.
Durante a formação acadêmica, os médicos são incentivados a não demonstrarem sentimentos
Manter o afastamento do paciente é uma diretriz usada para que o médico se concentre apenas na doença do paciente e na busca por um tratamento eficiente. Por essas razões, é comum ver em consultórios e hospitais pacientes que não ficam nem 10 minutos dentro da sala de consulta com o médico. Tudo é feito de forma rápida, automática e fria. Em muitas situações, o profissional de saúde pouco fala e nem olha nos olhos do paciente.
Esta prática, com a rápida evolução da IA e da simulação dos sentidos humanos pelas máquinas, como voz, visão e tato, faz com que os médicos passem a competir com robôs. E, claro, perdem. Nenhum médico consegue alcançar a velocidade de cruzamento de informações e correlações de variáveis que uma máquina consegue fazer em milissegundos.
A IA vai fazer com que as escolas de medicina deem ênfase, a não apenas evoluir nas habilidades técnicas médicas, que agora devem incluir novos conceitos como ciência de dados e IA, bioinformática, pensamento probabilístico e noções de algoritmos, mas também e principalmente, ter empatia com seus pacientes.
As futuras escolas de medicina deverão reavaliar as próprias tendências da profissão e repensar seu currículo, para se manterem relevantes. O artigo “Future Trends Help You Choose The Most Fitting Medical Specialty” mostra claramente que o médico dos próximos anos não terá similaridade com os médicos de hoje.
As especialidades da medicina são tão diversas quanto a composição metabólica do corpo humano, e as mudanças tecnológicas vão afetar todas elas, embora de maneira diferente. Embora seja impossível prever com precisão em que amplitude e velocidade as especialidades serão influenciadas pela tecnologia, podemos fazer algumas "suposições" sobre as que são mais e menos impactadas.
As especialidades que utilizam tarefas facilmente reproduzíveis e informatizáveis, como análise de imagens, vão sofrer mudanças significativas em seu perfil de atuação. As especialidades mais afetadas, portanto, deverão ser radiologia, dermatologia, oncologia, patologia, reumatologia e hematologia.
As especialidades mais afetadas pela IA deverão ser radiologia, dermatologia, oncologia, patologia, reumatologia e hematologia
Como outras profissões, veremos especialidades desaparecerem ou serem aglutinadas com outras, novas aparecendo, mas todas serão transformadas. Um exemplo é a diferença entre o perfil do cirurgião do século 19 e a de hoje. São completamente diferentes em suas habilidades.
Não podemos e nem devemos continuar formando médicos para a medicina do século 20. As ações robotizadas, o robô vai fazer. Ter empatia e se preocupar verdadeiramente com o paciente é que fará a distinção entre o médico e o robô.
*Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.