O mundo da arte é repleto de excentricidades, caprichos e anedotas. E há motivos de sobra para isso. A trama trazida pelo documentário “The Lost Leonardo” ajuda a entender esse universo. A certa altura, ele levanta a seguinte questão: “O mundo da arte enlouqueceu?”. E talvez essa seja mesmo a pergunta que mais paira na cabeça de quem quer entender a trajetória insólita da pintura Salvator Mundi, com a imagem de Jesus Cristo.
Comprada em Nova Orleans, em 2005, por US$ 1.175, a suposta obra perdida de Leonardo da Vinci (1452-1519) foi vendida em leilão da Christie’s, em 2017, por US$ 450 milhões. Pago pelo príncipe saudita Mohammed bin Salman, o valor foi o maior já alcançado em um leilão de arte até hoje.
Com première mundial do Festival de Tribeca, que termina neste domingo em Nova York, o documentário refaz a saga da pintura mais cara do mundo cuja autenticidade continua questionada. E, desde que foi comprado, pela cifra astronômica, o quadro não foi mostrado ao público, o que acentua a sua aura de mistério.
Por mais que nenhum dado novo seja apresentado aqui, o diretor dinamarquês Andreas Koefoed (de “Ballroom Dancer”) tem o mérito de examinar todo caso, com riqueza de detalhes. O mais interessante é a análise das relações entre arte, poder, ganância e política que o cineasta faz, a partir dos depoimentos colhidos.
Ainda sem data para estrear no Brasil, onde já tem a distribuição da Sony, o filme traz testemunhos discordantes que reaquecem a discussão em torno do trabalho pintado por volta de 1500. Será que tudo não poderia ser apenas uma farsa, o que colocaria em dúvida a credibilidade das instituições envolvidas?
Para o crítico de arte Jerry Saltz, Salvator Mundi não passa de uma “porcaria inventada”. “Todos os envolvidos concordaram com uma mentira porque ninguém queria ser expulso do círculo do amor, do poder, do dinheiro, da influência”, afirmou ele, no filme.
“Vimos curadores de museus, colecionadores, historiadores de arte e leiloeiros que foram cúmplices na construção desse belo sonho de um Leonardo perdido. E nem se trata de uma boa pintura”, completou o crítico.
Inicialmente, dois colecionadores compraram o quadro em mau estado, em 2005, catalogado como uma cópia de Salvator Mundi, de Da Vinci. Logo depois, a dupla procurou Dianne Modestini, restauradora e professora do Instituto de Belas Artes da Universidade de Nova York, para uma avaliação.
Dianne foi a primeira a atribuir a obra ao mestre italiano da Renascença, negando que ela tivesse sido realizada por seus discípulos. Ela defendeu que a técnica do quadro era a mesma utilizada em Mona Lisa. “Ninguém mais, além de Leonardo, poderia ter realizado a pintura”, assegura Dianne, em depoimento no filme.
Depois de um longo processo de restauração assinado por Dianne, a obra foi levada à National Gallery de Londres, para ser examinada por cinco especialistas, em busca de uma validação. Como o veredicto foi favorável, o museu inglês, que já planejava uma exposição de Da Vinci, incluiu Salvator Mundi na mostra, realizada entre 2011 e 2012.
“Apresentar a pintura como ‘atribuída a’ ou ‘possivelmente de’, distorceria a minha visão e contribuiria para manter a confusão” contou no documentário o curador da exposição Luke Syson. “A National Gallery estava em condições de mostrar o quadro como tal. Se eu tivesse me sentido diferente na ocasião, teríamos tomado outra decisão”, completou ele.
O que se questiona no documentário é se a National Gallery simplesmente não validou o trabalho como obra-prima de Da Vinci para atrair mais visitantes. A exposição foi um grande sucesso, vista por cerca de 325 mil pessoas.
“Eles não tinham o direito de exibir uma obra que não tinha sido 150% escrutinizada, para provar ser aquilo mesmo o que eles afirmaram. Sempre que há muito dinheiro envolvido, vemos um bando de vermes entrelaçados”, disse no filme o crítico de arte Kenny Schachter.
Toda a atenção que o quadro recebeu acabou por valorizá-lo. Em 2013, o negociante de arte suíço Yves Bouvier o comprou por US$ 83 milhões. E a peça foi imediatamente revendida a um de seus clientes, o magnata russo Dmitry Rybolovlev, por US$ 127,5 milhões, o que rendeu processos em vários tribunais. O russo alega ter sido roubado na transação.
“Costumamos dizer que, depois do tráfico de drogas e da prostituição, o mercado de arte é o mais desregulado do mundo. É um universo opaco, onde frequentemente não se sabe quanto algo vale de fato”, afirmou no documentário a jornalista Georgina Adam, editora do “The Art Newspaper”.
Ainda assim, Rybolovlev não tem do que reclamar, já que o quadro acabou vendido no lendário leilão por US$ 450 milhões. Inicialmente, a compra foi feita anonimamente, mas, mais tarde, o jornal “The New York Times” revelou que o proprietário era herdeiro do trono saudita.
Quando o museu do Louvre realizou em Paris uma exposição em homenagem aos 500 anos da morte de Da Vinci, em 2019, houve uma tentativa de incluir a obra. O príncipe saudita chegou a ser fotografado com o presidente da França, Emmanuel Macron, no Louvre, durante a visita que fez ao país europeu, em abril de 2018.
Na época, uma hipótese levantada foi a de que a validação de Salvator Mundi pelo Louvre poderia ser, antes de tudo, uma questão política ou mesmo econômica. Algo que no futuro talvez facilitasse acordos ou vantagens financeiras para os dois países.
Mas o quadro ficou de fora da mostra, devido à suposta exigência do príncipe saudita de que o trabalho fosse exposto ao lado da Mona Lisa. E o que veio depois aumentou as suspeitas de que se tratava inicialmente de um conchavo.
Após a confirmação de que Salvator Mundi não integraria a exposição, um livro realizado pelo próprio Louvre foi imediatamente retirado da livraria do museu. Essa publicação, que chegou a ser comprada por alguns visitantes, atestava se tratar mesmo de uma obra de Da Vinci, após um exame minucioso realizado pelo laboratório do museu.
Até hoje não se sabe por que o Louvre tirou o livro de circulação. Procurado pela equipe de “The Lost Leonardo”, o museu não se pronunciou a respeito – assim como nunca atendeu a imprensa para falar sobre o assunto.
A notícia mais recente que se tem de Salvator Mundi é a de que a pintura com Cristo bendizendo o mundo estava no iate do príncipe saudita ancorado no Mar Vermelho, até o final de 2020.
“Talvez o príncipe tenha estabelecido uma relação forte com o quadro, por ser o retrato de um salvador do mundo jovem e de barba”, disse no filme Stephane Lacroix, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris. “O príncipe pode querer guardá-lo por vê-lo como uma imagem de si mesmo.”