Na maioria dos países da América Latina, as taxas básicas aproximam-se de dois dígitos. A conta dos juros, decorrente do arranjo global de bancos centrais no combate à inflação, vai chegar e o próximo tema de discussão relevante na região será a política fiscal – talvez ainda no final deste ano.

Quem alerta é o economista Gustavo Arruda, head de Pesquisa Macroeconômica para América Latina do BNP Paribas. Em entrevista ao NeoFeed, Arruda pondera que a pressão sobre os governos latinos virá em primeiro lugar pela fatura dos juros altos; em seguida, pela pressão por mais suporte dos governos, portanto, por mais gastos sociais.

O economista lembra que os presidentes latinos recentemente eleitos tiveram o discurso de mais gastos públicos. “No Brasil, vemos no posicionamento dos dois principais candidatos à presidência uma clara intenção de ter que manter o que foi feito em função do apelo da população, caso da ampliação do Auxílio Brasil”, diz Arruda para quem será um “baita desafio conter os gastos”.

As economias latinas estão à frente das mais desenvolvidas no ajuste da política monetária para combater a inflação. Contudo, pondera o economista, os países latinos não deixarão de sentir os impactos de mais aperto que os maiores bancos centrais defenderam no simpósio de Jackson Hole, encerrado no sábado, 27 de agosto.

O pronunciamento mais aguardado, de Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (Fed), na sexta-feira, 26 de agosto, não deu margem para dúvida. Ao contrário, foi interpretado como sinal de que o juro nos EUA chegará a 4%. Hoje está entre 2,25% e 2,50%.

O Banco Central Europeu (BCE), a despeito da desaceleração da atividade em economias relevantes do bloco, poderá acelerar o alta de sua taxa de 0,50 para 0,75 ponto em setembro.

As bolsas desabaram em Nova York, na sexta-feira, 26 de agosto, após a fala de Powell, e o movimento prossegue nesta segunda-feira, 29 de agosto. As bolsas europeias operam em baixa, na sequência dos mercados asiáticos. E os índices futuros, nos EUA, seguem a mesma direção.

Acompanhe os principais trechos da entrevista ao NeoFeed:

O presidente do Federal Reserve (Fed), Jerome Powell, mandou uma mensagem clara em Jackson Hole?
O discurso de Powell foi muito direto e claro. Ele não abriu espaço para dúvidas sobre o compromisso do Federal Reserve em trazer a inflação para baixo. Como todos os bancos centrais, procurou não se amarrar à futura decisão, mas disse ao mercado que vai fazer o necessário para baixar a inflação, que não tem pressa para reverter medidas e que elas terão impacto na economia real.

Jerome Powell foi prático?
Foi prático e tentou corrigir algum desentendimento de sua colocação anterior (interpretada como menos agressiva na busca de inflação menor). E esse tipo de correção de discurso nem sempre é fácil na orientação da política monetária, especialmente quando o banco central está perto do fim de um ciclo monetário. Nesse sentido, que é o do BC do Brasil, a comunicação tende a ficar mais conturbada. Mas como o Fed tem muito a fazer, a mensagem pode ser mais clara.

Alguma sinalização de Jerome Powell foi particularmente importante?
Foi importante evitar que o mercado começasse a procurar um espaço para a redução da taxa de juro em 2023. Essa preocupação é relevante porque, quando se pensa em política monetária, os bancos centrais controlam os juros de curto prazo, mas os juros de longo prazo têm papel importante e são determinados pelo mercado. A política monetária perde impacto se os agentes econômicos começarem a considerar, antecipadamente, que virá uma redução de taxas.

O BC do Brasil fez algo parecido durante o ciclo de aperto monetário...
Fez sim, embora com mais ruído na comunicação. O presidente do BC, Roberto Campos Neto, em diferentes momentos do ciclo deixou claro que não se deveria ter pressa em avaliar quando começa o corte, porque ele virá quando o BC tiver certeza de que fez o trabalho necessário para reverter a inflação.

Quais são as consequências do posicionamento do Fed para a América Latina?
Ficou claro que o aperto monetário vai afetar o crescimento da economia americana, que será desacelerada, o que sempre tem impacto para as demais economias. Desaceleração nos EUA não é boa notícia para ninguém porque ela é um pedaço grande do PIB mundial. Mas alguns países têm sensibilidade maior. Esse é o caso do México que tem uma economia muito conectada aos EUA. Por ser uma economia muito próxima, as decisões do Fed afetam diretamente o câmbio. E juro maior nos EUA acaba levando os investidores para lá em detrimento da economia mexicana.

O Brasil sofre impacto parecido?
Em menor grau, porque o Brasil tem juro muito alto. No começo do ciclo, com a Selic bem mais baixa, estávamos mais expostos. O juro mais alto acaba suavizando os movimentos. Ainda assim, nossa percepção, quando analisamos os mercados no dia a dia, é de que o Brasil está muito dependente do comportamento dos mercados lá fora. Pode ser que em algum momento a correlação diminua com a eleição presidencial ganhando mais corpo, mas, por enquanto, seguimos o movimento lá de fora. Com juro a 13,75% ao ano, o BC não precisa se preocupar tanto com o nível do juro americano e pode se preocupar mais com efeito da nossa taxa de juro sobre a dinâmica da inflação.

O patamar do juro brasileiro acaba sendo um escudo contra os movimentos do Fed...
Até porque começamos o aperto monetário bem antes e com ajustes agressivos. Não estamos sozinhos. Outros países da região também começaram a elevar os juros na mesma época, tanto que a discussão sobre o pico da inflação está mais clara aqui na América Latina. Interessante é que, na maior parte dos países, o juro básico está chegando aos dois dígitos – México, Chile, Colômbia. A alta dos juros será um baita desafio para a política fiscal de cada um dos países.

Para os bancos centrais latinos, essa discussão já está na mesa?
No caso do México, o BC deve acompanhar muito provavelmente o que o Fed fizer em sua reunião sobre política monetária em 20 e 21 de setembro, mas já se vê a discussão no Banxico (BC do México) quanto à correlação das políticas. A política monetária no México já está entrando num campo contracionista. E se não desequilibrar o mercado cambial, haverá um descolamento de política monetária americana.

A maioria dos países da região tem problemas fiscais preocupantes?
Tenho a impressão de que a política fiscal será o próximo tema de discussão relevante na América Latina. Pode não acontecer nos próximos dois meses, mas a discussão chegará talvez ainda no final do ano. Primeiro, pela conta dos juros. Todos os países pagarão mais juros. Segundo, existe pressão da população da região por mais suporte dos governos. Portanto, de mais gastos sociais. Isso acontece na Colômbia, no Chile... Os presidentes latinos recentemente eleitos tiveram o discurso de mais gastos públicos.

"As pesquisas de opinião também mostram que essa eleição tem um apelo diferente. No alto das preocupações estão a economia e o social. Será um desafio conter os gastos"

No Brasil é diferente?
Aqui no Brasil tivemos o movimento do governo para ampliar o Auxílio Brasil e vemos no posicionamento dos dois principais candidatos à presidência uma clara intenção de ter que manter o que foi feito em função do apelo da população. As pesquisas de opinião também mostram que essa eleição tem um apelo diferente. No alto das preocupações estão a economia e o social. Será um desafio conter os gastos. Claro que cada país é um país e o Chile é um exemplo. Discute-se agora se a nova Constituição será aceita pela população, mesmo que não seja aprovada, haverá novas rodadas de discussão porque a população chilena busca mais gasto público.

E como o Brasil entra nesta história?
Quando a gente olha o tamanho da dívida e quanto ela custa, o Brasil dispara nesta comparação. Existem países que têm dívida maior que a nossa, mas custa menos para carregar. E têm países com dívida menor e que pagam mais ou não estão pagando – caso da Argentina. O Brasil é um caso peculiar porque temos uma dívida grande e estamos com juro muito alto. Por isso preocupa a dinâmica para o próximo ano. Como subimos o juro muito rápido, de uma hora para outra o custo dessa dívida vai acelerar.

Isso já está acontecendo?
Por ora, a arrecadação está muito alta, a economia está aquecida e a gente não está percebendo. Mas em breve, essa luz vai aparecer. Quem está em posição um pouco melhor é o México, que tem problemas de déficit comercial porque importa mais petróleo do que exporta, mas como não gastou muito com a Covid, praticamente não fez auxílio, e o governo é muito popular, não tem tanta pressão por gastos. E a dívida comparada à dos países da região é melhor. Tem uma situação mais estável. Além disso, o México pode se beneficiar pela vinda de produção de outros países, ante a preocupação com interrupções nas cadeias produtivas.

A discussão fiscal vai crescer e chegar logo. Mas chegará antes da inflação cair?
A partir das nossas projeções para Brasil, a impressão é de que a discussão fiscal chega antes de a inflação voltar para próximo da meta. E isso será um desafio adicional, porque se, por um lado, o risco fiscal chegasse no momento em que estamos embicando para a queda do juro, seria possível argumentar que o custo da dívida está caro, mas vai começar a cair. Porém, isso não deve acontecer.

A inflação parece persistente...
Vemos no cenário, por exemplo, que teremos desafios constantes. A guerra Rússia e Ucrânia não vai terminar tão cedo. E os preços das commodities, embora tenham subido muito e depois recuado, seguem elevados. O nível de preços preocupa porque temos a percepção de que uma parte do aumento de preços ainda não foi repassado. E o custo de produção da soja, do milho está o dobro do que era, basicamente pelo preço dos fertilizantes. No caso de Serviços, tem preços que não completaram o ciclo de ajuste. Este é o caso de Educação.

Commodities elevadas não é bom para o Brasil e para a América Latina em geral porque somos exportadores?
Depende do estado da economia. Como a política monetária estará mais restritiva, por um lado, a política monetária trará o Produto Interno Bruto (PIB) para baixo, mas talvez não caia tanto quanto poderia cair por conta das commodities. Neste ano, por exemplo, a expectativa de PIB (projetamos 2,5%) foi ajudada pelos preços das commodities. Para 2023, esperamos zero de PIB, mas o viés é para cima, levando em conta a perspectiva para commodities. Não estamos fazendo alterações em nossas projeções, inclusive, porque (o ritmo de expansão) leva em conta a política fiscal e não está claro o que teremos no próximo governo.

A política monetária tem relevância nesta projeção de PIB zero...
A política monetária tira PIB. Nossos modelos apontam para retirada de 3% de PIB em 2023. Mas esse “desconto” é compensando por outros vetores – PIB inercial, produtividade trazida pelas commodities – mas ainda precisamos saber o que as commodities nos reservam e também a política fiscal.

"Ainda vale a máxima de que quando os EUA espirram, o Brasil também fica gripado"

Isso tem implicação na inflação?
Se o governo não tivesse tomado as medidas fiscais (desoneração dos combustíveis), a inflação estaria próxima de 10% em 12 meses. Então, as ações que foram feitas ajudaram a inflação, mas ainda não temos ideia se as medidas serão revertidas. Em tese, algumas delas expiram em 31 de dezembro deste ano, enquanto outras estão sendo avaliadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Neste momento, há algum cuidado adicional que o Brasil deve ter?
Ainda vale a máxima de que quando os EUA espirram, o Brasil também fica gripado. Embora, neste momento, o Brasil não esteja tão correlacionado com a economia americana, o Brasil estará exposto à redução de liquidez global. Estaremos num mundo de menos dólar rodando por aí, muito diferente do tivemos até agora.