Percorrer as 242 páginas do livro Políticas Públicas Bem-sucedidas: Lições Para Promover o Bem Comum, organizado por Marcos Mendes, economista e pesquisador do Insper, reforça algumas certezas.

Uma delas é que, apesar das históricas disfuncionalidades do Estado brasileiro e de seu sistema político-eleitoral, o País consegue produzir políticas públicas bem planejadas e executadas, com excelentes resultados.

Alguns desses casos de sucesso estão esmiuçados ao longo de 11 capítulos escritos por 23 autores, entre acadêmicos e especialistas dos temas abordados, do governo e do setor privado.

“Formular uma política pública bem-sucedida é muito difícil, exige um diagnóstico adequado de um problema. Em seguida é preciso planejar, executar e acompanhar os resultados”, afirma Mendes, nesta entrevista ao NeoFeed.

O livro aborda vários exemplos bem-sucedidos, da introdução de câmeras corporais pelas polícias militares a programas sociais, como o Saúde da Família e CadÚnico; das parcerias público-privadas às reformas de crédito, passando pela criação do Pix, de programas de combate ao desmatamento e de adoção do ensino médio integral, entre outros temas.

Os bons exemplos, porém, estão sempre sob ameaça — e essa certeza é ressaltada por Mendes na entrevista. O populismo eleitoral, por sinal, é um vilão das boas políticas públicas.

“Às vezes, programas que estão sendo bem conduzidos sofrem alterações de cunho populista em véspera de eleição que pioram sua qualidade”, diz o economista, citando as mudanças do Bolsa Família, cujo programa alterou critérios para agradar os eleitores e acabou desestruturado.

Lançado pela editora Jandaíra, o livro ganha mais relevância por ter sido criado dois anos após outra obra organizada por Mendes, mas com exemplos opostos: Para Não Esquecer: Políticas Públicas que Empobrecem o Brasil, na qual especialistas analisam medidas fracassadas adotadas no País.

Provocado, o economista admite que não há casos citados no livro de 2022 que foram revertidos. “Infelizmente o que existe são exemplos de algumas políticas públicas ruins que acabaram extintas e agora voltaram”, diz, citando como exemplo a interferência na Petrobras. “Não vejo muito aprendizado, e sim o contrário — uma tendência maior ao índice de reincidência.”

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Marcos Mendes ao NeoFeed:

Qual a maior lição que o livro traz?
A principal lição é que formular uma política pública bem-sucedida é muito difícil, exige superar uma série de obstáculos. Para resolver um problema por meio de uma política pública é necessário ter um diagnóstico adequado e analisar todos os caminhos possíveis para resolver aquele problema. O livro traz vários exemplos bem-sucedidos, como a criação do Pix, do marco do saneamento e do Cadastro Único, e também comparações — por que a adoção do ensino médio em tempo integral deu certo em Pernambuco e fracassou no programa federal e no estado de São Paulo, por exemplo.

É difícil traçar o diagnóstico correto para criar uma boa política pública?
Em geral, o que se vê na prática é uma situação inversa: as pessoas já aparecem com a solução e trazem um problema para encaixar nessa solução. É o caso de uma empresa que deseja obter um subsídio. Ela precisa procurar um problema para justificar a adoção desse subsídio.

Há algum exemplo que ilustra essa distorção?
Sim, o programa do governo chamado RenovaBio, que nada mais é que aumentar o preço dos combustíveis fósseis para estimular a produção de etanol. Claramente é um programa que atende os interesses corporativos das empresas do setor sucro-alcooleiro. Mas foi desenhado de forma a parecer um programa de apelo ambiental, de substituição de combustíveis, sem olhar o problema ambiental como um todo ou analisar as possibilidades de solução.

Uma boa política pública exige diagnóstico adequado de um problema e analisar os caminhos para resolvê-lo”

Como identificar os principais gargalos na implementação de políticas públicas mais bem-sucedidas, nas diferentes fases: planejamento, discussão, ao colocar em prática e na revisão?
O principal gargalo, como disse, é o diagnóstico. Segundo é prescindir se precisa ou não de uma política pública – em muitos casos não precisa, mas o governo intervém do mesmo jeito. Por isso, é questionável, por exemplo, até que ponto precisamos de uma política industrial tão pesada como temos no País, com muita proteção das empresas por meio de barreiras tarifárias. Em terceiro lugar, analisar as diferentes formas de intervir e, quando for o caso, efetivamente intervir. E, em quarto, desenhar a política pública de forma a poder quantificar seus efeitos.

Quais são os vícios políticos recorrentes que prejudicam as boas políticas públicas?
O maior deles é o populismo eleitoral. Às vezes, programas que estão sendo bem conduzidos sofrem alterações de cunho populista em véspera de eleição que pioram sua qualidade. O livro cita o exemplo do Bolsa Família: o presidente Jair Bolsonaro criou um benefício adicional que distorceu totalmente os incentivos dentro do programa — que foi o pagamento mínimo de R$ 600 por família. Isso incentivou as famílias a se dividirem. Assim, uma família de três pessoas começou a mentir, afirmando que cada um mora sozinho para ter acesso ao valor, consumindo de forma ineficiente os recursos do programa.

“Formular uma política pública bem-sucedida é muito difícil, exige superar uma série de obstáculos”, diz Mendes

O governo atual parece ter pressa em adotar políticas sociais. A lei que aprovou, prevendo reajuste do salário-mínimo acima da inflação, não é um exemplo de proposta com boa intenção que acaba causando o efeito contrário?
De novo, para mim, é um exemplo clássico de populismo. O governo mira o impacto do eleitorado, mas ao analisar tecnicamente a lei é possível observar vários problemas. O primeiro deles é o efeito da vinculação dos benefícios previdenciários ao salário-mínimo. Se aumenta muito o mínimo, quebra o Tesouro e aumenta a despesa previdenciária. Em segundo lugar, mesmo em termos de mercado de trabalho, o aumento muito forte do salário-mínimo não necessariamente é benéfico para as pessoas mais pobres.

Por quê?
Porque geralmente os mais pobres são os de menor qualificação — o valor que adicionam ao trabalho, portanto, é menor. Nenhum empregador quer pagar uma remuneração a um trabalhador que agrega a ele menos do que um salário-mínimo no processo produtivo. Ou seja, esse trabalhador tende a ser expulso do mercado de trabalho e ir para a informalidade. Aumento de remuneração se obtém melhorando a produtividade do trabalhador, levando-o a ter um grau de instrução maior, a fazer um curso, etc. Ao tentar regular o preço, gera-se distorções que acabam prejudicando a quem se queria beneficiar.

Na introdução do livro você cita o sistema federativo do País como um incentivador na adoção de políticas públicas bem-sucedidas. Tem a ver com adotar exemplos que deram certo em outros estados?
Sim, o sistema federativo permite a comparação e a competição entre os governos estaduais, para ver quem faz melhor. O livro traz vários exemplos. Foi o caso da construção de estádios para a Copa do Mundo por meio de parcerias público-privadas. Na Bahia deu certo e em Pernambuco deu errado. Escola em tempo integral foi muito bem-sucedida em Pernambuco, e as adotadas pelo governo federal e em São Paulo, não. A vantagem é comparar as experiências e avaliar os resultados. Se tudo ficasse centralizado no governo federal não teria essa opção de experimentação, de competição e até comparação.

“O sistema federativo permite a competição entre os governos estaduais, para ver quem faz melhor”

O Legislativo, com aprovação de jabutis e resoluções que atendem a grupos de interesse, tem sido mais resistente em aprovar políticas públicas eficientes ou o Executivo, até por suas funções constitucionais, é imbatível nessa área?
O Executivo tem o problema das escolhas de quem está no comando. Sendo bem explícito: os membros do PT têm preferência por políticas que dão maus resultados, porque têm uma concepção de política pública e de economia que me parecem distorcidas – para eles, cabe ao Estado a função fundamental de promover o desenvolvimento econômico. E, para isso, vale qualquer coisa: vale protecionismo, vale subsídio, vale déficit público. Essa fórmula já se mostrou ineficaz no Brasil e em várias partes do mundo.

E o Legislativo?
Tem uma premissa um pouco diferente, que provém do nosso modelo político-eleitoral. Temos um sistema de eleição caracterizado pela lista aberta. Assim, se o MDB da Paraíba, por exemplo, consegue eleger três deputados, os três eleitos pelo partido serão os três mais votados da chapa. Isso faz com que os candidatos do MDB concorram contra os partidos adversários e também contra os candidatos da mesma chapa. Isso individualiza as campanhas. Eleito, o deputado passa o mandato passando dinheiro para a base parlamentar, para os prefeitos que o apoiaram e trabalhando para os grupos de interesse que financiaram sua campanha.

No livro você adverte que mesmo as políticas públicas bem-sucedidas não estão imunes a retrocesso. Como isso se dá na prática?
Os avanços na área de saúde são um exemplo: elas estão sob ameaça com a proliferação de emendas parlamentares do Orçamento. Essas emendas bagunçaram a política de planejamento de saúde. É o deputado quem decide onde construir um hospital, e não o Ministério da Saúde. As verbas para fundos municipais são agora divididas não por necessidade do perfil de doença, mas por conveniência política.

“As emendas parlamentares bagunçaram a política de saúde. É o deputado quem decide onde construir um hospital”

Há dois anos você organizou o livro de políticas públicas malsucedidas, com um número de páginas quase três vezes maior que o atual. Dá para cravar que o Brasil é mais suscetível a elaborar políticas públicas erradas do que benéficas?
Talvez haja uma falha minha, como organizador do livro atual, de não conseguir encontrar pessoas que pudessem falar de algumas políticas públicas bem-sucedidas. Um caso que ficou de fora do livro é o do Porto Digital do Recife, um programa de sucesso envolvendo o governo municipal, o estadual e a comunidade pesquisadora do Recife, formando uma quantidade enorme de pessoas hiper especializadas, com criação de empresas. Tive menos tempo para organizar esse livro e mobilizar as pessoas do que o anterior. A despeito disso, diria que prevalece no Brasil as políticas públicas de pior qualidade, dentro da dificuldade de se criar boas políticas e todos os obstáculos impostos por interesses específicos.

Há exemplos de péssimas políticas públicas adotadas no País, citados no livro de 2022, que agora foram revertidas?
Infelizmente o que existe são exemplos de algumas políticas públicas ruins que acabaram extintas e agora voltaram. A intervenção excessiva na Petrobras é uma delas. Há também mais protecionismo comercial, com exigência de conteúdo local para obtenção de benefícios de financiamentos públicos. Não vejo muito aprendizado, e sim o contrário — a tendência maior ao índice de reincidência.

As principais funções do Estado brasileiro — prover segurança, educação e saúde —, têm apresentado, de forma geral, resultados muitos ruins. Por que é tão difícil adotar políticas públicas bem-sucedidas nessas áreas?
É preciso fazer uma distinção. Acho que, por exemplo, a saúde se sai bem melhor que a educação, embora a saúde receba menos recursos carimbados em comparação com a população que atende. O SUS tem várias carências, mas conseguiu colocar de pé, por exemplo, uma cobertura vacinal e acordos de cooperação com os hospitais de São Paulo, com bons resultados. Não é, portanto, algo uniforme, um fracasso geral de todas as políticas públicas. Temos avanços e também problemas clássicos, como a captura da política pelas corporações de servidores.

Em que áreas esse problema é mais comum?

Isso acontece muito na educação pública. Os sindicatos dessa área são muito fortes. Boa parte dos recursos está travada, são muito resistentes à avaliação dos professores. Com isso não se consegue mudar método de ensino e isso vai atrasando a educação. Na saúde existe muita mais flexibilidade.

É possível dizer que impera no Brasil aquele “complexo de vira-latas” do brasileiro citado por Nelson Rodrigues em relação a políticas públicas, a falta de confiança de que o País possa criar algo exemplar para o mundo?
Não acho que exista um “complexo de vira-latas” nesse sentido. No livro tem o caso de uma política pública brasileira que não seguiu a prática internacional, inovou e deu certo — o Cadastro Único. A maioria dos países gasta um dinheirão para fazer a filtragem de quem entra ou não no cadastro para atender políticas sociais. O Brasil optou por fazer a entrada por autodeclaração — e checar a posteriori se o candidato pode ficar ou não, checando seus dados em outras bases de dados do governo. O estudo citado no livro mostra que o governo conseguiu, durante muito tempo, tirar do CadÚnico quem estava indevidamente, focando nas pessoas mais pobres e com baixo custo de administração.