Uma contradição marca a concepção e condução da política econômica do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: o diagnóstico equivocado dos problemas brasileiros. É o que afirma o economista Marcos Mendes, professor do Insper.

Servidor licenciado da Consultoria Legislativa do Senado, com passagens pelo Banco Central e Tesouro Nacional, Mendes foi assessor especial do Ministério da Fazenda entre 2016 e 2018, ajudando a formatar a Emenda Constitucional do Teto de Gastos e a reforma da Previdência.

Segundo ele, o conceito de economistas do PT é que o crescimento da economia é induzido pelo governo e não pelo setor privado. Além disso, o foco no aumento da receita em detrimento do corte de despesa reforçam a possibilidade de o pacote fiscal - a ser anunciado pela equipe econômica - frustrar as expectativas, com metas frouxas de déficit primário.

“O governo está criando para si uma armadilha, pois corre o risco de a montanha parir um rato”, alerta Mendes, nesta entrevista ao NeoFeed. Ele prevê dois efeitos negativos para o governo com um arcabouço frágil: desancoragem da inflação e reação do Congresso Nacional, com aprovação de medidas duras para retomar o equilíbrio fiscal.

Quais são os principais erros e acertos na concepção e condução da política econômica do novo governo federal?
A forte participação do presidente Lula na condução de temas econômicos indica a opção por uma política econômica da cabeça dos economistas do PT. E, na minha opinião, eles têm um diagnóstico equivocado dos problemas brasileiros. Eles acham, por exemplo, que quem induz o crescimento econômico do País é o governo e o baixo crescimento se deve à falta de demanda. Daí a ideia de o governo precisar gastar mais para girar a economia e aumentar a demanda para o país crescer.

Mas o governo não pode estimular esse processo no curto prazo?
Sabemos há 20 anos, pela teoria do crescimento econômico, que o crescimento é um processo de médio e longo prazo, que se faz com ganho de produtividade, inovação e aumento de comércio – portanto, é puxado pelo setor privado, e não pelo governo. Outro erro é achar que aumentar a taxa de investimento é essencial para o crescimento econômico. Ela não é a causa central, apenas acompanha o processo geral de crescimento. Não adianta induzir uma produção que não atende as necessidades do mercado. Foi o que aconteceu nos governos passado do PT, que construíram estaleiros e refinarias que ficaram inacabadas, uma série de investimentos que viraram sucata.

O que mais preocupa no nosso cenário a médio prazo, uma vez que o BC sinalizou que a queda dos juros só deve começar muito depois do que se imaginava?
O que preocupa é a contradição de políticas fiscal e monetária. Um exemplo é esse programa Desenrola. Na prática, vai colocar recurso fiscal para pagar dívidas privadas de famílias inadimplentes com os bancos. Isso vai gerar estímulo ao crédito: as pessoas vão limpar o nome e tomar mais crédito, indo contra a política do BC de esfriar a economia para segurar a inflação. Como o governo acha que política fiscal é feita para estimular crescimento e não ter preocupação com risco da dívida, vamos ter esse descompasso o tempo todo.

"Como o governo acha que política fiscal é feita para estimular crescimento e não ter preocupação com risco da dívida, vamos ter esse descompasso o tempo todo"

Qual sua expectativa para o arcabouço fiscal prometido pela equipe econômica?
É difícil prever metas rígidas de déficit primário no arcabouço. Não está no DNA desse governo controlar gastos. O que está se desenhando não é uma limitação específica, são diretrizes. Ou seja, vamos olhar para frente e caminhar na direção de ter despesa e dívida crescendo em tal ritmo. Se não der certo, paciência. Outro problema é que essas diretrizes para frente serão baseadas em estimativas do próprio governo, que pode superestimar o crescimento.

O governo não se comprometeu a cortar despesas?
Haverá também o foco maior na receita do que na despesa. Vão querer fazer uma regra em que a despesa pode aumentar quando a receita estiver crescendo mais. Mas isso é um movimento pró-cíclico: se estimular gastos com economia acelerada, vai induzir o superaquecimento e, mais à frente, a inflação. O pacote anunciado em janeiro pelo ministro Fernando Haddad, focado na receita, é um exemplo. Não vejo esforço político em cortar despesas, ao contrário: governo vem anunciando aumento do salário mínimo e do teto do imposto de renda, por exemplo.

Quais seriam os efeitos negativos de um arcabouço fiscal frouxo?
Primeiro, uma desancoragem da inflação, o que curiosamente vai ajudar o lado fiscal. A inflação é como droga: num primeiro momento dá um barato, mas as consequências vêm em seguida. Foi o que ocorreu em 2021 e 2022: o PIB cresce, a relação dívida/PIB cai, a arrecadação cresce rapidamente quando a inflação sobe, a despesa vai sendo corroída, mas depois é ajustada pela inflação. Se o governo não der um rumo fiscal em dois anos, sem medidas efetivas que demonstrem a sustentabilidade da dívida, a inflação pode ir para 10%. Quando ela muda de patamar fica mais difícil voltar atrás. O governo está criando para si uma armadilha, pois está prometendo muito nesse arcabouço e corre o risco de a montanha parir um rato. E, se isso acontecer, é possível que tenha uma reação do Congresso Nacional, que deve substituir a proposta frouxa por algo mais duro.

"Se o governo não der um rumo fiscal em dois anos, sem medidas efetivas que
demonstrem a sustentabilidade da dívida,
a inflação pode ir para 10%"

O governo aposta também na reforma tributária. A aprovação traria um alívio?
É importante destacar o amadurecimento de todos os segmentos pela aprovação da reforma. Quem reagia contra eram os governadores, mas perceberam que a arrecadação de ICMS como imposto está morrendo e vão aderir. Há outros segmentos que devem resistir, como os ligados à Zona Franca de Manaus e alguns municípios, por causa do ISS. Sobre a resistência do setor de serviços, que alega que vai pagar mais imposto e onerar a classe média, é preciso fazer algumas considerações.

Quais são essas considerações?
Primeiro, não serão mudados todos os preços, e sim alguns da cesta básica, sem necessariamente aumentar o custo de vida da classe média. Segundo, o impacto para o setor é superestimado. Com o IVA, vão poder abater de seu imposto todos os insumos que teriam de ser tributados. Terceiro, o pessoal de serviços está no Simples, que não vai ser afetado pela reforma. Alguma adaptação ou mecanismo de transição é factível e está prevista na reforma. A aprovação não vai ser um passeio, mas acho que está encaminhada.

O senhor organizou no ano passado um livro bem interessante, “Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil”. Quais dessas políticas públicas equivocadas corremos o risco de serem adotadas pelo atual governo?
Várias delas podem voltar. Por mais que o presidente do BNDES diga que não vai ter subsídio, que não vai mudar a TLP (Taxa de Longo Prazo, de juros), tudo o que ele fala é no sentido contrário. Temo a política de expansão do MEI (Microempreendedor Individual), que já se mostrou pouco eficaz para incluir trabalhadores de baixa renda no mercado formal e tem alto custo fiscal. Tem ainda o controle de preços de combustíveis, que o presidente da Petrobras pode retomar, a interferência e até ressureição de estatais que seriam privatizadas. E, por fim, da política monetária, já se demonstrou que reduzir a taxa Selic não é cloroquina econômica, mas querem caminhar nessa direção novamente.

"O que preocupa é que passamos por um processo de polarização política nos últimos anos, com um político à direita e outro à esquerda. Os métodos, embora distantes politicamente, são parecidos"

Muitos desses erros foram cometidos nos governos anteriores do PT. Faltou reconhecer o que não deu certo?
Na verdade, avaliam que não erraram. Criou-se internamente no PT a lenda de que o que derrubou a economia foi o fato de o Aécio Neves ter contestado a eleição da presidente Dilma Rousseff. Ou porque o Joaquim Levy fez um "austericídio" em 2015. Sempre criam um bode expiatório externo. O que preocupa é que passamos por um processo de polarização política nos últimos anos, com um político à direita e outro à esquerda. Os métodos, embora distantes politicamente, são parecidos. Um deles é desmontar algo essencial para o crescimento econômico, que é a estabilidade das instituições. Bolsonaro contestou o STF, a lei das estatais que não o deixava mexer no preço da gasolina, o equilíbrio federativo com os governadores e atuou contra o teto de gastos. O Lula entra na mesma linha, contra a estabilidade fiscal e monetária, a autonomia do BC e das agencias reguladoras.

Quais são as consequências desse tipo de comportamento para o País?
Esse movimento dos dois lados de desmonte das instituições vai corroendo a capacidade do País de crescer a longo prazo. Agora, o governo Lula tem a grande oportunidade de consertar os erros da gestão Bolsonaro na questão da política ambiental e atrair capital relacionado a essa área. Temos também potencial de energia limpa. Mas precisamos organizar as políticas públicas em torno disso, a pesquisa e a capacidade do país de captar recursos, e avançar no mercado de carbono internacional.