O risco de o Brasil sofrer um apagão na rede elétrica ainda este ano aumentou em outubro, mês em que as usinas solares e eólicas centralizadas deixaram de gerar 5,9 mil gigawatts-hora (GWh) de energia, devido aos cortes determinados pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para evitar sobrecarga do sistema - causada pelo excesso de oferta de energia renovável em relação ao consumo.

Foi o terceiro mês seguido em que os cortes de geração de usinas renováveis, o chamado curtailment, bateram recorde. O prejuízo dos geradores de renováveis somou R$ 1,1 bilhão em outubro.

Para se ter uma ideia do desperdício, os cerca de 8.000 megawatts-médio (MWm) de cortes em outubro equivalem 1,75 vez a garantia física de energia da Usina Belo Monte – ou seja, a quantidade máxima de energia elétrica que a usina localizada no Rio Xingu pode gerar e vender.

Entre janeiro e outubro, foram descartados 20,4% de toda a geração solar e eólica que poderia ser produzida no País, mais que o triplo do ocorrido no mesmo período do ano passado. Este valor equivale a 10,1% do consumo de todo o Brasil no mês.

Os dados foram compilados e divulgados na quinta-feira, 6 de novembro, por Donato Filho, diretor-geral da consultoria Volt Robotics, que também fez uma análise minuciosa da Medida Provisória 1.304/2025, aprovada na semana passada pelo Congresso Nacional e concebida para consolidar uma reforma do setor elétrico.

Segundo ele, a MP estimula a adoção de medidas para endereçar o problema do curtailment, da criação de mecanismos para dar flexibilidade ao sistema à adoção do uso de baterias de armazenamento. Mas os resultados só devem começar a aparecer a partir de 2028, até reduzir o nível de cortes para um patamar tolerável em 2030.

“No momento em que o Brasil é o palco das discussões mundiais sobre clima, com a COP 30 em Belém, temos a triste notícia de que, pelo terceiro mês consecutivo, batemos os recordes de desperdício de energia renovável”, diz Donato, lembrando que o País fez a lição pela metade.

“É hora de apresentar capacidade de liderança e visão de futuro para transformar o problema do excesso de energia renovável em um diferencial competitivo”, complementa.

Os seguidos recordes de curtailment expõem os prejuízos acumulados pelas 1.500 usinas renováveis centralizadas em operação no País, que movimentam cerca de R$ 37 bilhões por ano. E também a gigantesca contradição que cerca o sistema elétrico brasileiro: o risco de um apagão não por falta, mas por excesso de oferta de energia renovável em relação ao consumo.

De acordo com a Volt, a perda acumulada nos últimos dois anos por essas usinas centralizadas é de um terço da sua receita total. Considerando-se o valor efetivo de cada contrato das usinas solares e eólicas no ambiente regulado (excluindo o Mercado Livre de Energia), em que os impactos sofridos se dão pelo preço da energia vendida, o custo dos cortes de geração de janeiro a outubro de 2025 soma R$ 5,4 bilhões.

Conjunção de fatores

O curtailment é resultado do rápido aumento da oferta de energia renovável, sobretudo solar. Dois fatores impulsionaram seu crescimento: os subsídios concedidos ao longo dos anos e a evolução tecnológica das fontes eólica e solar, com ganhos de escala crescentes e redução de custos.

Um terceiro elemento ajudou a acelerar o aumento dos cortes das usinas centralizadas – o crescimento desordenado da geração distribuída (GD), segmento conhecido por abrigar usinas de menor porte, incluindo os painéis solares instalados nos telhados.

Com taxas de retorno acima de 40%, a GD permite injetar carga na rede sem restrições, o que obriga o ONS a cortar a geração das usinas centralizadas, de grande porte, para evitar a sobrecarga no sistema.

Por isso, a GD se tornou o fator mais crítico para o aumento do curtailment. O volume atual de carga da GD, com capacidade instalada de 43,4 gigawatts (GW), já é próximo da capacidade somada das usinas eólicas (35 GW) e solares (14 GW) centralizadas.

Os cortes de geração renovável em outubro concentraram-se no Rio Grande do Norte (43,8%), Ceará (34,9%) e Minas Gerais (30,8%). De janeiro a outubro, o curtailment já é 283% superior (mais que o triplo) ao ocorrido em todo o ano de 2024.

O documento divulgado pela Volt, com os dados dos cortes de outubro, sugere adoção de oito medidas para endereçar o problema do curtailment.

Entre elas, aceleração de obras de linhas de transmissão - com acesso a crédito com taxas reduzidas, desde que antecipadas em pelo menos 18 meses – e uma série de iniciativas voltadas para estimular o consumo pela manhã, mexendo no preço da energia neste horário, quando os cortes são maiores.

Algumas das medidas da consultoria também foram citadas na MP recém-aprovada, que sugere valorização da flexibilidade do sistema, criação de mecanismos competitivos para redução de demanda na ponta e oferta de demanda e alocação de custos de reserva conforme perfil de consumo (quem consome mais na ponta paga mais).

Donato observa que o texto da MP também sugere a regulamentação de sistemas de armazenamento (BESS), com diretrizes para incentivar oferta no pico por meio de baterias.

“As baterias são consideradas uma grande opção para reduzir o curtailment”, diz o especialista. “Elas podem carregar energia em períodos de sobra, com preços baixos de energia, e descarregar no sistema em picos de demanda, com preços altos, reduzindo a necessidade de térmicas e amortecendo a variação de preços.”

A MP inclui sistemas de armazenamento de energia no Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (REIDI), criado pela Lei 11.488/07, prevendo benefícios como redução a zero do Imposto de Importação sobre baterias para estes sistemas.

Embora a MP faça menção a que os custos dos sistemas de armazenamento para a rede sejam pagos pelos geradores, essa mudança pode gerar instabilidade nos preços de energia, pois os geradores podem repassar esses custos.

A expectativa de aumento progressivo de BESS com queda de custos e possíveis alívios tributários é apontada pelo setor como um fato positivo. Uma simulação da Volt, porém, mostra o desafio para que as baterias sejam implementadas em larga escala.

O estudo indica que a instalação em massa de sistema de baterias junto a usinas solares e eólicas pode reduzir os cortes de geração renovável em até 80% até 2030. Mas, para isso, seria necessário que o parque nacional de baterias tenha 40 mil MWh instalados – sendo que hoje esse índice é de cerca de 850 MWh.

Com isso, é necessária a adoção das outras medidas sugeridas pela Volt e também as incluídas na medida provisória.

Ressarcimento

A MP, por sinal, propõe um mecanismo para ressarcir os geradores pelos cortes, divididos em duas categorias. Os compensáveis, que se referem apenas a cortes por razões externas (elétricas e de confiabilidade), seriam ressarcidos. O valor retroativo estimado para essa categoria é de R$ 2,8 bilhões.

Os chamados cortes não compensáveis, por sobreoferta de energia e chamados de cortes energéticos – os afetados pelo curtailment – continuariam sendo um risco e custo para os geradores. A previsão do ONS é que este tipo de corte se torne majoritário no futuro.

O ressarcimento viria de um saldo superavitário de R$ 3,8 bilhões de contratos de reserva e disponibilidade. Em vez de devolver todo o saldo aos consumidores (o que reduziria as tarifas), a proposta é usar R$ 2,8 bilhões para pagar os geradores cortados. O R$ 1 bilhão restante seria devolvido aos consumidores cativos.

De acordo com avaliação da Volt, concluiu-se que essa metodologia de ressarcimento não vai causar um aumento direto na tarifa, mas sim uma redução menor do que a esperada. O consumidor cativo não terá impacto tarifário, pois o mecanismo utiliza um saldo que já seria seu.

O diretor da consultoria, porém, aponta um conflito em dois artigos da MP que tratam do tema de forma diferente, gerando incerteza. Um deles, o Artigo 1A, propõe que os cortes sejam ressarcidos via Encargo de Serviço do Sistema (ESS), pago por todos os consumidores (livres e cativos).

Já o Artigo 1B detalha o uso do saldo de R$ 3,8 bilhões para compensar os cortes passados, afetando principalmente os consumidores cativos.

“Há uma expectativa de que um dos artigos seja vetado para evitar duplicidade”, diz Donato.

Outro tema abordado na MP é a abertura do Mercado Livre de Energia. O texto propõe a abertura total com prazo de 24 meses para indústrias e comércios e até 36 meses para consumidores residenciais e rurais.

Uma simulação da Volt aponta uma economia média de 11% para os consumidores que migrarem, um percentual competitivo com a geração distribuída (GD). A atratividade varia por região, sendo maior onde o peso da energia na tarifa é mais alto, como, por exemplo, o Centro-Oeste.

“O encargo de subcontratação foi estimado pela Volt em no máximo R$ 1 bilhão por ano, cerca de R$ 2/MWh, sendo considerado um custo baixo que não inviabiliza a migração”, afirma o especialista da Volt.