Dados do World Gold Council mostram que a demanda pelo ouro atingiu a máxima histórica no terceiro trimestre de 2025. Os ETFs com lastro nesse ativo registraram entradas líquidas de US$ 26 bilhões - o trimestre mais forte já contabilizado. Para Eric Hatisuka, CIO do banco suíço Mirabaud, a explicação para essa valorização, que chegou a tocar em 60% no ano, é geopolítica.

“Todo esse excesso de estímulo e de intervenção faz com que você tenha uma emissão monetária e um aumento de base monetária. Isso faz com que as moedas caiam em relação ao ouro”, diz Hatisuka, em entrevista ao NeoFeed. “O dólar é, hoje, um instrumento político e de sanções. Em um mundo mais polarizado, países buscam ativos fora do sistema custodiados por bancos ocidentais. Daí a procura por ouro físico.”

Nesse contexto de guerra comercial, o real está entre as moedas que mais se valorizaram. O problema é que esse comportamento abre espaço para a ampliação de gastos pelo governo: dólar fraco gera conforto imediato e reduz o “termômetro” da economia local.

De acordo com o estrategista-chefe do banco suíço, a disciplina fiscal fica em segundo plano quando há alívio cambial, o que cria problemas futuros para um País com característica expansionista. “Se o agente disciplinador [dólar] ‘dorme’, aumenta o risco de desvios fiscais que se enraízam no orçamento e depois são difíceis de reverter”, afirma ele.

Com cerca de US$ 35,6 bilhões em ativos sob gestão globalmente, o banco bicentenário com sede em Genebra atua como family office e gestora no Brasil, onde possui US$ 2,5 bilhões sob aconselhamento.

Para seus investidores, a Mirabaud mantém uma estratégia de alocação conservadora, com base em títulos indexados à inflação com vencimentos em 2029 e 2030, em detrimento às ações e fundos multimercados. Esse portfólio deve se manter até que a corrida eleitoral de 2026 se torne mais clara.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

O uso geopolítico do dólar reforça a demanda por ativos alternativos como o ouro?
Sim. O dólar é hoje um instrumento político e de sanções. Em um mundo mais polarizado, países buscam ativos fora do sistema custodiados por bancos ocidentais. Vem daí a procura por ouro físico, não apenas por contratos custodiados no Ocidente.

A demanda por ouro físico pode continuar crescendo?
Há um limite, mas o ouro tende a subir no longo prazo enquanto bancos centrais e governos continuem ativistas. No curto prazo há exageros no rali.

"O ouro tende a subir no longo prazo enquanto bancos centrais e governos continuem ativistas"

Existe um ponto de retorno para o ouro acima de US$ 4 mil a onça-troy ou essa é uma tendência estrutural?
O ouro não é um ativo que paga renda. Seu mérito é a escassez, a oferta fixa, e seu reconhecimento histórico. Desde a antiguidade o ouro é reserva de valor. Até 2008, o ouro não exibia ganhos relevantes. Inclusive no início dos anos 2000 o ouro era visto como relíquia antiga pelos analistas. Mas a crise de 2008 levou ao uso ativo de políticas monetárias, o chamado quantitative easing, abrindo uma caixa de ferramentas que passou a ser usada.

É essa expansão monetária e fiscal recente que recolocam o ouro em evidência?
Operações que expandem a base monetária mudaram a relação entre moeda e ouro. E, após a pandemia, o estímulo fiscal também aumentou essa pressão sobre moedas. Não é o ouro que está subindo, são as moedas que estão caindo. Essa é a grande história. Todo esse excesso de estímulo e de intervenção faz com que você tenha uma emissão monetária e um aumento de base monetária que faz com que elas caiam em relação ao ouro.

Mas esse é um movimento sem volta?
No curto prazo, o movimento foi exagerado. Esse rali de, aproximadamente, US$ 3,5 mil a US$ 4,5 mil foi rápido. Os bancos centrais comprando ouro explicam parte do movimento, mas estruturalmente a tendência é de alta enquanto políticas permanecerem ativistas.

Por que outras commodities, como o petróleo, não estão subindo?
Ao analisar o rali do ouro, comparei com indicadores de mercado. O petróleo está em torno de US$ 60 e é guiado por demanda. Se há estímulo fiscal, a demanda impulsiona o preço. Quem determina o preço do petróleo e da maioria das commodities é a demanda. Oferta importa, mas choques de demanda e impulso fiscal são o motor principal hoje.

Esse comportamento é surpreendente?
Sim, eu esperava alguma alta, mas não que o petróleo caísse. A oferta se adiciona aos poucos. Mesmo um grande campo não despeja produção de uma vez, então a demanda continua sendo decisiva.

A desintegração das cadeias produtivas gera inflação mais alta e crescimento menor?
A guerra comercial iniciou um processo de desagregação das cadeias produtivas. Isso reduz vantagens comparativas, tende a baixar o crescimento estrutural e elevar a inflação basal. A pandemia acelerou esse ponto de não retorno.

Qual é o peso da China nesse cenário?
A China tem excesso de capacidade e enfrenta deflação interna. Com câmbio administrado, ela acaba exportando deflação ao vender produtos mais baratos globalmente. Se o yuan se desvalorizar livremente, isso seria inflação na China e deflação no resto do mundo.

"Dólar mais fraco dá alívio e sensação de riqueza. Ele atua como termômetro de risco"

Mas o dólar fraco não beneficia emergentes como o Brasil?
Sim, dólar mais fraco dá alívio e sensação de riqueza. Ele atua como termômetro de risco. Mas se esse termômetro “quebrar”, governos perdem disciplina fiscal e gastam mais, criando problemas futuros.

É um convite ao afrouxamento fiscal?
Também dá margem a governos para cometer excessos. Se o agente disciplinador [dólar] “dorme”, aumenta o risco de desvios fiscais que se enraízam no orçamento e depois são difíceis de reverter.

O governo brasileiro já tem ampliado gastos.
Expansões e universalizações [gás, luz, subsídios, transporte] engessam despesas, mas quando o câmbio sobe ou a maré de liquidez vira, o ajuste fica doloroso.

A saída é o aumento de impostos?
Aumentar imposto resolve parte do déficit na linha final, mas sem cortes de gastos o impulso fiscal permanece. Isso é inflacionário e gera ineficiências.

Sem cortar despesas, o problema é empurrado para frente?
Exato. Muitas despesas estão represadas; o ajuste pode ser suavizado por medidas como teto de indexação do salário mínimo, mas o núcleo do problema é a necessidade de cortar gastos estruturais, o que é politicamente difícil.

Você não acredita ser possível?
Reformas que atingem quem será afetado, como funcionários públicos, só avançam quando houver liderança política disposta a aceitar perda pessoal. Isso é raro. Por isso, reformas profundas têm dificuldade de sair.

O que você pensa sobre o arcabouço fiscal?
Não achei que o teto de gastos duraria. Instrumentos políticos e a cultura local tendem a corroer limites formais de gasto. Manter disciplina exige instituições e cultura política que o Brasil não tem de maneira estável.

"Manter disciplina [fiscal] exige instituições e cultura política que o Brasil não tem de maneira estável"

E a cultura política brasileira é expansionista.
Sim, os representantes locais têm incentivos para ampliar gastos. Sem o termômetro do mercado funcionando, a pressão por aumento de despesas predomina.

Ainda vê possibilidade de corte na taxa Selic este ano?
Eu esperava cortes ainda este ano, talvez em dezembro, mas o Banco Central tem sido resistente. Cortes consistentes provavelmente só em 2026. E quanto mais demorar, maior o espaço para redução depois se a inflação e o externo colaborarem.

A credibilidade do BC melhora se ele segurar o corte de juros neste momento?
Resistir a pressões políticas aumenta a credibilidade e ajuda a ancorar expectativas, o que pode ser benéfico eleitoralmente e para inflação.

Qual ativo protege melhor em choque de juros globais?
Em choque de aperto global, dólar de curto prazo e títulos de curtíssimo prazo tendem a performar. O ouro pode cair porque não gera renda, mas proteger duration e ter exposição curta a dólar ajuda.

Qual é o principal risco para o Brasil?
Perder disciplina fiscal quando a liquidez global apertar, combinado com queda acentuada nos preços de minério, soja e petróleo. Esses seriam gatilhos para uma crise de conta corrente e necessidade de ajustes duros.

O Brasil tem algum algum amortecedor?
A exploração de novos campos de petróleo, como a Margem Equatorial, e outras receitas ajudam a adiar, mas não substituem disciplina fiscal e reformas.

O que você recomenda como prioridade para investidores locais?
Preservar caixa, proteger exposição cambial, focar em exportadores ou empresas com receitas em dólar. O ouro como hedge faz sentido, mas com atenção à volatilidade de curto prazo.