Os Estados Unidos e a China já se digladiam em uma guerra comercial, tecnológica e de influência política. Agora, as duas superpotências podem se enfrentar em outro campo de batalha: os das moedas digitais.

A disputa entre os dois países começa a se expandir para o incipiente mercado das Moedas Digitais de Bancos Centrais (CBDCs, na sigla em inglês), uma nova tendência do sistema financeiro internacional para melhorar a agilidade, compensação e os processos de liquidação entres os bancos comerciais, sistemas de pagamentos e transações entre os BCs dos países.

Após pressões políticas do governo e do Congresso dos Estados Unidos, o Federal Reserve (Fed), o Banco Central dos EUA, finalmente começou a dar os primeiros passos para a criação do dólar digital.

As moedas digitais são desenvolvidas utilizando a tecnologia blockchain, a mesma usada por criptomoedas. Mas, diferentemente dessas, é centralizada e regulamentada pelo BC do país emissor e enquadrada na categoria CBDCs.

A filial do Fed em Nova York deu início, em meados do mês passado, sem grande alarde, a um plano-piloto de 12 semanas para analisar a viabilidade do dólar digital.

A ação conjunta envolve testes com 9 bancos e instituições financeiras. Entre elas, Citigroup, HSBC, Wells Fargo e Mastercard, por meio de uma plataforma chamada rede de responsabilidade regulamentada (RLN, na sigla em inglês).

O programa tem como meta simular operações financeiras, incluindo transferências interbancárias e pagamentos, por meio de tokens digitais – que representam dólares em uma conversão direta de 1:1 –, e avaliar limitações e eventuais erros durante o processo.

A motivação nos EUA para avançar com o dólar digital foi mais estratégica do que monetária. Trata-se de uma resposta à rápida absorção do yuan digital na China, conhecido pela sigla e-CNY, lançado em 2020 e que começa a ser usado em pequenos pagamentos no varejo do país.

O rápido avanço do yuan digital jogou pressão no Fed. O e-CNY já foi adotado por sete bancos comerciais de 20 cidades e disponibilizado por meio de um aplicativo do BC chinês, baixado por cerca de 200 milhões de chineses.

No primeiro semestre deste ano, quando o Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos Deputados dos EUA votou a favor do desenvolvimento de uma moeda digital americana, o desejo de proteger o dólar, ameaças à segurança nacional e a concorrência com a China foram as razões mais mencionadas por deputados democratas e republicanos.

Há um temor nos EUA de que o governo chinês pretenda ampliar o uso e-CNY no comércio exterior como uma alternativa ao dólar no caso de eventuais sanções comerciais contra o país asiático, semelhantes às adotadas contra Rússia após a invasão da Ucrânia.

Para Shang-Jin Wei, professor de Negócios e Economia Chinesa na Universidade Columbia, nos EUA, essa preocupação é exagerada.

“Os países que pagam importações da China em yuan, como Rússia e Arábia Saudita, e a transferência internacional de dinheiro da China para fins de investimento são sempre feitos digitalmente, mas não em e-CNY, e sim pelo Swift”, disse o acadêmico ao NeoFeed.

A adoção do e-CNY, porém, não deixa de ser mais uma ferramenta para o governo chinês controlar seu sistema financeiro e a movimentação de dinheiro de cidadãos e das empresas.

O Fed vinha resistindo em avançar no mercado do CBDCs por causa da primazia da moeda americana no sistema financeiro global. Cerca de 60% das reservas internacionais mantidas pelos BCs dos países são em dólar.

A moeda americana também é a mais utilizada pelo Swift, atual sistema global de troca de informações bancárias e transferências de dinheiro entre as instituições financeiras, que deve perder espaço para os CBDCs.

Atualmente, o dólar tem uma participação de mercado de 42,1%, bem à frente de outras moedas, como o euro (34,4%), a libra esterlina (7,85%), o iene japonês (2,96%) e o yuan chinês, com 2,44%.

Os benefícios de adotar uma moeda digital, porém, vão além de preservar a soberania do dólar como moeda global.

De acordo com Rodolfo Olivo, professor da FIA Business School, a adoção de moedas digitais reduz em muito o custo do uso do papel moeda, que embute impressão, transporte e o controle sobre falsificação – uma preocupação nos EUA, por onde circulam US$ 5,8 trilhões em notas, de acordo com o Fed.

“Além de trazer mais agilidade na transferência de dinheiro entre bancos e países que o sistema Swift, a tecnologia blockchain das moedas digitais permite rastreabilidade maior, oferecendo uma camada de segurança extra contra fraudes financeiras”, diz Olivo.

Acilio Marinello, coordenador do MBA em Digital Banking da Trevisan Escola de Negócios, vê outro efeito positivo para os EUA adotarem o dólar digital.

Segundo ele, o sistema financeiro americano, em certa medida, ainda guarda características analógicas. “Os americanos costumam usar cheques e o mercado de pagamento é descentralizado nos EUA, com isso um cheque leva dias para ser compensado”, diz.

Mais de 100 países têm programas ou testes para criar sua moeda digital. Além da China, Índia e Bahamas já introduziram a novidade em seu sistema financeiro. França, Suíça e Cingapura conduziram um teste conjunto para suas moedas digitais, um dos primeiros entre países.

O Banco Central brasileiro, que montou um grupo de estudo em 2021, pretende implementar o real digital no ano que vem. De início em transações financeiras e investimentos. A rápida incorporação do PIX pela população deverá facilitar a tarefa do BC de introduzir a moeda digital no nosso sistema financeiro.

“O brasileiro já abandonou o cheque e está usando apps até para pagar o ônibus”, afirma Marinello. “O real digital levará mais transparência ao sistema financeiro e certamente vai ser fácil de ser incorporado pelo usuário do PIX, basta ao BC criar a cultura de adoção da moeda digital.”