Brasília – Um país de soja e ferro. Entra ano, sai ano, as exportações das commodities agrícolas e minerais seguem puxando o resultado econômico do Brasil. Com volume recorde no ano passado, elas mantiveram a balança comercial no azul, com US$ 98,838 bilhões, o melhor desempenho desde o início da série histórica, em 1989. O frenesi com as lideranças nacionais, porém, tem ofuscado um problema crônico e crescente da realidade nacional: o completo desmonte da indústria, que está mergulhada em um processo de “reprimarização” da economia.

O termo é citado por Francisco Saboya, presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), para definir o estágio em que o Brasil se encontra hoje. Ao discorrer sobre o cenário da indústria da transformação, em entrevista ao NeoFeed, Saboya se agita na cadeira e recorre a números para embasar sua preocupação central: retirar a indústria da lona em que se encontra.

“O fenômeno da desindustrialização acontece em países de renda mais elevada, em decorrência da criação de serviços tecnológicos avançados. Nestes países, encontramos uma faixa de US$ 20 mil de renda per capita. Mas no Brasil é diferente. De 1985 para cá, o país começou a se desindustrializar intensamente, com renda per capita de US$ 10 mil. O Brasil pegou uma doença de economia rica, sendo pobre. Precisamos escapar dessa armadilha, que tem sido armada com a aposta concentrada em commodities”, afirma Saboya.

No comando da Embrapii, órgão federal que está completando dez anos, Saboya tem a missão de selecionar e apoiar projetos empresariais que viabilizem as ambições do plano Nova Indústria Brasil, anunciado em fevereiro deste ano, com a meta de disponibilizar R$ 300 bilhões em financiamentos e mudar a realidade do setor.

Em uma década, a Embrapii apoiou projetos de 1.722 empresas de todo o país e de diferentes tamanhos. Com a oferta de dinheiro a fundo perdido, ou seja, sem necessidade de reembolso, já injetou R$ 1,28 bilhão em iniciativas, bancando cerca de um terço de cada projeto que patrocina. Os outros dois terços se dividem entre a empresa contratante e uma das 94 instituições de pesquisa e desenvolvimento que são parceiras nacionais.

Em tom crítico, Saboya alerta para a necessidade urgente de se fazer um reposicionamento industrial. Se um dia a indústria foi protagonista das divisas produzidas pelo país, respondendo por mais de 22% do PIB, hoje não passa de mera coadjuvante, com participação de apenas 11,5%. Se nada for feito, corre o risco de sair de cena de vez.

Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Por que a indústria se encontra na situação crítica que vemos hoje?
Isso é resultado de um processo que se intensificou nos anos 2000. O Brasil cresceu enormemente no século passado. Foi uma das economias que mais avançaram, principalmente entre as décadas de 1950 e 1970. A China, ainda hoje, não cresceu como o Brasil cresceu em 1973, por exemplo, no apogeu do milagre econômico, quando o PIB Industrial cresceu 14,9%. Isso fez com que o Brasil representasse 2,8% da manufatura global no fim dos anos 1970. O que acontece é que abandonamos a indústria para olhar para outras prioridades. E, hoje, a gente vive catando migalhas, com crescimento anual de 1,1%, 1,2% ao ano. Estamos reduzidos a 1,4% da produção mundial, metade do que tínhamos 50 anos atrás com nossos produtos industrializados. A indústria, que representava até 22% do PIB há 50 anos, hoje está reduzida a 11,5%. Isso dá o panorama do fenômeno da desindustrialização precoce e prematura que atravessamos.

Onde o país tem errado?
A desindustrialização é um fenômeno que ocorre em todos os países desenvolvidos, conforme cresce o peso dos serviços tecnológicos avançados, por exemplo. Vimos que parte da indústria podre e de baixa produtividade, poluente, foi para a Ásia. Assim foi o modelo no Primeiro Mundo, onde cresce o peso das tecnologias da informação, da robótica e das inovações em geral. O fenômeno da desindustrialização acontece em países de renda mais elevada, onde encontramos uma faixa de US$ 20 mil de renda per capita. Mas no Brasil é diferente. De 1985 para cá, o país começou a se desindustrializar intensamente, com renda per capita de US$ 10 mil. O Brasil pegou uma doença de economia rica, sendo pobre. Precisamos escapar dessa armadilha, que tem sido armada com a aposta concentrada em commodities.

"O Brasil pegou uma doença de economia rica, sendo pobre. Precisamos escapar dessa armadilha, que tem sido armada com a aposta concentrada em commodities"

O senhor se refere ao peso do agronegócio e da mineração na economia.
É um fato. Nas últimas décadas, o Brasil tem se desindustrializado, ao mesmo tempo em que tem saudado e incensado sua posição como potência agrícola. Na realidade, isso embute uma reprimarização competitiva da economia. Veja que a participação do agro e das commodities minerais no PIB já é superior a da indústria. Vimos isso acontecer em 2021. A última vez que isso tinha acontecido, no sentido inverso, foi em 1950, quando a indústria passou a superar o agro e a mineração, ou seja, voltamos ao cenário da década de 1940.

Por que a liderança em commodities passa a ser um problema para o país?
Isso é uma armadilha na qual o Brasil está preso. Claro que é bom saber que o Brasil é o maior produtor de alimentos, de proteínas. O mundo depende de comida e, portanto, depende do Brasil. Acontece que as pessoas não estão se dando conta de que esse é um processo de reprimarização competitiva. Essa visão se iniciou, claramente, com a criação da Embrapa, lá em 1973, com a ideia de que se deveria introduzir pesquisa, ciência, tecnologia e inovação, mas dentro desse segmento mais tradicional. Isso foi positivo, claro, mas o problema é que passamos a alocar um esforço expressivo da pesquisa tecnológica brasileira no agro, para manter a sua competitividade, esquecendo todos os outros setores.

"Se continuarmos dessa maneira, com essa agenda nacional pautada apenas pelo agro, haverá dificuldades para os demais setores. A margem de valor agregado e inovação nas commodities é muito pequena"

Por que a concentração no agro é ruim?
Se continuarmos dessa maneira, com essa agenda nacional pautada apenas pelo agro, haverá dificuldades para os demais setores. A margem de valor agregado e inovação nas commodities é muito pequena. Parte do esforço tecnológico que hoje está voltado para o agro poderia estar concentrado na área de saúde, por exemplo, na manufatura, na biogenética, na genética molecular e na tecnologia da informação.

Qual é a situação atual desses setores da indústria?
Veja só. O Brasil teve superávit de US$ 98,8 bilhões na balança comercial de 2023. Foi um resultado recorde. Mas o que acontece? Todos os produtos de alta intensidade tecnológica são deficitários. Se isso não mudar, teremos que vender cada vez mais soja, cada vez mais milho, para compensar o déficit crescente nos produtos de alto valor agregado, por causa do volume que a gente importa dessas indústrias.

Qual é o tamanho desse rombo?
Foram quase US$ 40 bilhões de déficit só no ano passado. Em 2022 foram mais de US$ 60 bilhões de saldo negativo (confira gráfico abaixo). Esse volume só caiu em 2023 porque houve retração de importação, não porque passamos a ampliar a indústria nacional. A verdade é que a indústria botou o pé no freio. Estamos perdendo a chance de marcar posição em um mercado de alto valor agregado e maior índice de empregos. Estudos mostram que um celular iPhone, da Apple, por exemplo, envolve impostos e pagamento de royalties de mais de 200 patentes, um pacote que soma um custo de US$ 165, mas o valor de entrada para comercialização desse iPhone mais básico é de US$ 600, ou seja, são quase quatro vezes o valor agregado. Nós importamos esse aparelho, não o fazemos. Nosso gap com produtos de média-alta e alta intensidade tecnológica é crescente. E isso faz com que você tenha que, cada vez mais, entrar no mercado de commodities, que tem uma flutuação de preço gigantesca e margens muito baixas, para compensar essa situação.

Mas o agro, pelo peso que tem na economia, também não é um indutor de inovação?
Em parte, sim, mas o que a gente melhora, de forma geral, é o processo de produtividade, colocando drones, sensores, visão computacional nas lavouras. Há, sim, uma série de inovações e o Brasil faz isso muito bem. Mas, repito, isso é uma reprimarização da economia. E isso é perigoso, porque dá a sensação de que estamos no caminho certo.

Não estamos?
Não, e por uma razão muito clara. Dependemos de produtos com margem muito baixa, suscetível a todo tipo de impacto e que terei de exportar cada vez mais para lidar com o que abandonei. Na realidade, o agro, que tem hoje 26% do PIB, também capturou o PIB da indústria, dos setores tecnológicos avançados e, assim, passou a pautar a agenda nacional. Veja que, se a gente retirar os drones, os sensores, a visão computacional e a robótica do setor, a gente volta a ser uma fazenda, um sítio. Essa é uma questão que não está sendo devidamente explorada. É preciso enxergar o risco que isso apresenta ao país.

Como essa realidade tem refletido nos projetos apoiados pela Embrapii?
É uma situação curiosa. Hoje, o setor que mais demanda inovação na Embrapii é o agro, mas não como criador, e sim como beneficiário. Apenas 3% das empresas que chegam aqui têm origem no agro. A maioria são da área de tecnologia da informação, atividades científicas e técnicas, além de máquinas e equipamentos. Mas, quando a gente olha para onde vão as inovações, sabemos que são destinadas ao agro. Ora, se o setor de TI é o que mais demanda inovação nas portas da Embrapii, por que a gente não tem inovações na área de TI, com criação e produção de tecnologias para celulares, computadores, dispositivos de robótica avançada etc.? Porque estamos concentrados em desenvolver artefatos para o agronegócio. Isso é uma realidade inegável, que grita, e o problema é ela ser quase um monopólio.

E o que o governo e a Embrapii pretendem fazer sobre isso?
O governo atual está dando atenção novamente a toda indústria. Acaba de ser anunciada uma nova política com recursos que serão geridos pelo BNDES, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e nós. É preciso admitir que se trata de uma descoberta tardia, por parte de um setor que tem a cultura do protecionismo, sobre a importância da indústria avançada com alto padrão de inovação, para que possamos reverter essa curva de declínio. A indústria brasileira precisa fazer o que o agro vem fazendo há 50 anos, apostando em inovação para recuperar padrões de competitividade, e agora em escala global, não mais em mercado protegido.

Que indústrias são as mais urgentes?
A área de saúde, por exemplo, com seus fármaco-químicos, hoje tem déficit na nossa balança comercial de US$ 20 bilhões. Não por acaso, a retomada econômica na indústria da saúde é uma das prioridades do novo plano de industrialização. Estão surgindo novas doenças, novos diagnósticos, tratamentos muito caros, medicamentos mais caros ainda, e a gente fica aqui assistindo uma indústria química fazer sabonete, cloro e detergente. Isso tem que mudar.