O mercado financeiro da Argentina reagiu com um misto de surpresa e euforia na terça-feira, 16 de setembro, à proposta do Orçamento de 2026 apresentada na noite anterior pelo presidente Javier Milei, em pronunciamento na TV.

O índice Merval, o principal termômetro das ações na bolsa de valores de Buenos Aires, subiu 2,3%, recuperando parte das perdas acumuladas nas últimas semanas, os títulos soberanos registraram alta de 5%, após o governo ter manifestado sua disposição de honrar seus compromissos de dívida e, para tranquilizar o mercado, o dólar mostrou tendência de queda, afastando-se do teto do regime de taxas flutuantes.

A reação otimista refletiu uma reversão de expectativa após o pesadelo em sequência enfrentado por Milei nas últimas semanas - as piores desde a posse, em dezembro de 2023 -, marcado por um escândalo de corrupção envolvendo sua irmã e principal assessora, Karina Milei, o efeito negativo de mudanças na política cambial e uma derrota acachapante nas eleições locais da Província de Buenos Aires.

A surpresa ficou por conta do pronunciamento de Milei na véspera, gravado de forma antecipada, no qual o presidente argentino deixou de lado a postura histriônica e agressiva que costuma marcar suas aparições públicas.

Sem frases de efeito ou insultos a políticos, Milei reafirmou em seu discurso o equilíbrio fiscal como "a pedra angular" de sua gestão e pediu a colaboração de governadores e do Congresso Nacional para o avanço das reformas pendentes.

"O pior já passou", insistiu, e pediu, quase como um apelo, "que os políticos e o povo se comprometam com o equilíbrio fiscal" como forma de garantir o desenvolvimento sustentável.

Milei surpreendeu os argentinos ao anunciar que 85% do Orçamento será destinado à saúde, pensões e educação. "O capital humano é a prioridade deste governo", afirmou, enfatizando que, apesar de o projeto de lei "representar o menor nível de gastos em relação ao PIB dos últimos 20 anos", ele destina “bilhões de pesos para universidades", aumento de 5% nas pensões, de 17% na assistência médica e elevação de 8% nos benefícios por invalidez, "acima da inflação" de 2026, ou seja, dos 14% projetados.

O presidente argentino também ensaiou uma espécie de autocrítica em relação ao sucesso demonstrado no passado recente. "Nenhum argentino vivo jamais experimentou a Argentina que estamos construindo, e é por isso que às vezes ficamos excessivamente entusiasmados, porque nos emocionamos com o horizonte. É por isso que o esforço vale a pena", enfatizou ele.

Prejuízo encoberto?

Apesar do tom conciliatório, analistas políticos e econômicos ressaltaram que a guinada de Milei não foi suficiente para encobrir o prejuízo causado pela sucessão de problemas acumulados pelo presidente argentino.

A denúncia de um esquema de propinas do setor farmacêutico envolvendo Karina Milei e o subsecretário de Gestão Institucional, Eduardo "Lule" Menem, foi um duro golpe contra seu discurso de campanha contra a corrupção.

Ele veio à tona após mudanças na política cambial, que eliminaram a maioria dos controles de câmbio para pessoas físicas e reduziram a diferença entre o dólar oficial e o paralelo. O movimento gerou uma onda de calotes de empresas endividadas que apostavam no peso desvalorizado.

A derrota eleitoral nas eleições na Província de Buenos Aires, no início do mês, foi atribuída a esses dois casos, mas evidenciou uma espécie de desencanto até mesmo das correntes mais tolerantes com a reforma econômica do governo.

“Embora seja positivo que o orçamento enfatize o equilíbrio fiscal, acreditamos que a narrativa ficou aquém das expectativas”, escreveram analistas da Inviu, a fintech do Grupo Financiero Galicia.

“O apelo aos governadores e o tom mais moderado dão algum sinal de diálogo político, embora não acreditemos que esses anúncios sejam capazes de reduzir significativamente a volatilidade no curto prazo”, complementou.

O câmbio continua sendo a ponta solta da política econômica de Milei. "A combinação de juros de curto prazo mais baixos e riscos eleitorais acelerou a pressão sobre a moeda e, embora esperássemos que o teto fosse atingido no início de outubro, antes das eleições, agora isso pode acontecer a qualquer momento, com a promessa de vendas agressivas sendo a única variável que o impede”, alertaram em nota analistas da Max Capital.

“O governo insiste em manter sua política cambial, mas há um consenso crescente sobre a necessidade de reformar o sistema cambial se as eleições não favorecerem o partido governista, como esperado, e a paridade com o partido peronista se consolidar", complementa a nota.

Parte da cautela dos analistas se deve ao curto espaço que o presidente tem pela frente para recuperar o apoio dos argentinos, que vão às urnas no próximo mês, nas eleições de meio de mandato do Congresso, essenciais para o partido de Milei aumentar a participação, hoje com 15% na Câmara e 11% no Senado.

“Embora a recuperação inicial proporcione algum alívio à curva global, a perspectiva permanece incerta”, adverte a consultoria PPP. “Com cinco semanas de negociações antes das eleições de outubro e muito pouca margem para erros políticos, a volatilidade do mercado provavelmente permanecerá elevada."

Analistas políticos, por sua vez, destacaram a dupla direção do pronunciamento do presidente argentino, um para o mercado – para dizer que continua fiel à sua política fiscal – e outra para os eleitores, a quem reconheceu algo inédito, que as ações do governo nem sempre são reconhecidas e está ciente de que seu programa econômico, ou alguns aspectos importantes dele, perderam apoio. Milei falou como um presidente que se dirige à sociedade, tentando convencê-la a continuar apoiando suas políticas.

Carlos Pagni, colunista do jornal La Nación, observa que o pragmatismo de Milei demonstra uma virada talvez sem volta no figurino exótico de um político alternativo que chegou ao poder quebrando regras jamais vistas na política argentina.

Na avaliação de Pagni, esse sentimento foi destruído na derrota eleitoral na Província de Buenos Aires. Segundo ele, a partir daí, iniciou-se outra fase em que o governo de Milei é como todos os governos: pode perder e pode ganhar eleições. “Mas o encanto, o feitiço, se perdeu, o milagre se dissipou”, escreveu Pagni.