Revolta, surpresa e decepção. A reação negativa e a imediata mobilização no setor elétrico e no segmento de petróleo e gás, na quarta-feira, 29 de outubro, ao parecer da Medida Provisória 1.304, apresentado na véspera pelo relator, senador Eduardo Braga (MDB-AM), na Comissão Mista do Congresso Nacional, refletem o mal-estar com a proposta, que não resolve os gargalos do setor e ainda pode até aumentar o custo com a volta das térmicas a gás e carvão.
Concebida para consolidar a maior reforma do setor elétrico em 20 anos, o texto da MP foi tão mal-recebido que gerou, em menos de 24 horas, a supressão dois artigos – um que determinava o repasse aos consumidores dos benefícios fiscais concedidos às distribuidoras de energia das Regiões Norte e Nordeste, e outro sobre a tarifação da micro e minigeração distribuída (MMGD) – e uma articulação política visando ao adiamento da votação na comissão, o que fará com que o texto seja votado na quinta, 30 de outubro.
A medida provisória altera diversas leis relacionadas ao setor energético e ao mercado de gás natural no Brasil. Ela estabelece limites para os recursos arrecadados para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e propõe a contratação de usinas hidrelétricas de até 50 MW. Além disso, a medida define condições para o acesso e comercialização do gás natural da União.
Dois temas concentraram críticas dos agentes e especialistas do setor ouvidos pelo NeoFeed. Um deles foi o fato de a MP não sugerir uma solução para os cortes de geração de energia renovável – o chamado curtailment -, o maior gargalo do setor elétrico, ao deixar de fora medidas para controlar a geração descontrolada de energia injetada na rede por parte do segmento de Geração Distribuída (GD), que inclui painéis fotovoltaicos instalados nos telhados.
Outro foi a reintrodução de um jabuti, que já havia sido incluído em outros projetos de lei em tramitação no Congresso, abrindo espaço para que as usinas termelétricas movidas a gás natural e a carvão mantenham seus nacos na venda de energia aos consumidores, uma medida que vai encarecer o custo do sistema.
“Hoje, o sistema elétrico tem dois grandes problemas e eles simplesmente não foram endereçados pela MP, chega a ser surreal”, resume ao NeoFeed Eduardo Ricotta, CEO da Vestas na América Latina, gigante dinamarquesa líder global em soluções de energia eólica, que projeta, fabrica, instala e faz a manutenção de turbinas eólicas.
“Um deles é a GD, que gera muito curtailment, levando a prejuízos bilionários de grandes usinas solares e eólicas centralizadas, que estão perdendo até 50% de receita”, adverte, lembrando que, em 2020, a GD teve R$ 450 milhões de subsídios. Em 2024, os subsídios para a GD deram um salto, para R$ 12 bilhões.
O aumento dos subsídios, 26 vezes em quatro anos, segundo Ricotta, prejudica o consumidor cativo e agrava o curtailment. O executivo da Vestas adverte que a GD já é a segunda maior fonte de energia do País, com 43 gigawatts (GW) instalados, sem controle pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
Reportagem publicada na semana passada pelo NeoFeed indica que a falta de controle da GD – administrada pelas distribuidoras de energia, mas sem autonomia para cortar a geração – ameaça causar um apagão no País.
Ricotta observa que a tarifa estipulada para a geração distribuída e incluída na MP – de R$ 20 para cada 100 kilowatt-hora – não abrange toda a GD, sendo, portanto, insuficiente.
“Essa tarifa não cobre os custos sistêmicos, com subsídios chegando a 78% em alguns casos, a atratividade fica artificialmente alta, desequilibrando o ambiente de investimentos e penalizando quem não está na GD”, diz. No final do dia, após pressão do segmento da GD, essa medida acabou retirada da MP.
A proposta que retoma jabutis também foi duramente criticada por Ricotta. Ela prevê que as termelétricas a carvão e a gás possam ser contratadas na modalidade de reserva de capacidade com vigência até 31 de dezembro de 2040. Além disso, as outorgas de geração e autorizações dessas usinas poderão ser prorrogadas por 25 anos.
“Com esse jabuti são criados no total três problemas: aumento do custo de energia, do curtailment e de emissão de CO2”, diz Ricotta.
“A prorrogação de térmicas a carvão por mais 15 anos é um contrassenso frente aos compromissos climáticos do Brasil e à tendência global de descarbonização”, emenda o presidente do Instituto Nacional de Energia Limpa (INEL), Heber Galarce.
Avanços
Apesar das críticas, Ricotta aponta alguns aspectos positivos da MP, cujo relator incorporou 109 das 435 emendas propostas por deputados e senadores. Entre eles, a criação de um teto para a CDE, fundo setorial que financia políticas públicas do setor elétrico.
Além de limitar o encargo da CDE, que hoje representa entre 15% e 17% da conta de luz, a MP permite o uso de parte das outorgas de concessões renovadas para cobrir esse custo. A ideia é dar previsibilidade e aliviar o bolso do consumidor.
Outro avanço foi a criação do Encargo de Complemento de Recursos (ECR), que obriga os próprios beneficiários da CDE — como grandes empresas do setor — a arcarem com parte dos custos quando houver extrapolação do orçamento.
“A ECR faz com que beneficiários assumam parte do ônus ao ultrapassar certos níveis; embora positivos, não atacam a causa raiz do problema, a GD e o curtailment”, reforça o executivo.
Outras boas notícias já eram previstas pelo setor. Uma delas é o incentivo para o segmento de baterias de armazenamento de energia. A MP propõe isenção total de tributos federais para a compra e importação de baterias, com um limite de renúncia fiscal de R$ 1 bilhão.
Para Ricotta, os avanços com as baterias ajudam a complementar a geração eólica e solar: "A possível retirada de impostos, a exemplo de data centers, estimula a demanda, especialmente no Nordeste."
Outro artigo elogiado é a que confirma a abertura do mercado livre em até três anos após a sanção da MP, o que permitirá que consumidores de baixa tensão possam escolher seu fornecedor: “A expansão para baixa tensão dá poder de escolha ao consumidor, modernizando o setor”, afirma Ricotta.
Mais críticas
Outras mudanças previstas pela MP, em especial no setor de óleo e gás, porém, foram recebidas com muitas críticas por esse segmento.
O texto da MP incorporou uma série de dispositivos que impactam o mercado, entre eles para a contratação de gasodutos e redução da reinjeção de gás natural. As produtoras, no entanto, afirmam que os percentuais de reinjeção seguem critérios técnicos para maximizar o aproveitamento dos projetos. Outra novidade é a proposta de revisão do preço de referência do petróleo usado para o cálculo de royalties.
O Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (IBP) emitiu nota manifestando “profunda preocupação” com o artigo. Segundo a entidade, “a mudança proposta traz insegurança regulatória e pode desestimular investimentos, especialmente em campos maduros”.
Em nota a clientes, a XP avalia que a adição de disposições que afetam o setor de petróleo upstream (exploração e produção) não era esperada, uma vez que a MP 1.304 se concentra principalmente na regulamentação das concessionárias de energia elétrica.
“Se aprovado como está, o projeto de lei poderia gerar uma receita adicional de R$ 7,5 bilhões por ano para o governo, mas também aumentaria a carga tributária sobre as empresas do setor de óleo e gás”, diz a nota.
Benefícios fiscais
Também causou profunda irritação a proposta incluída por Braga prevendo que benefícios fiscais concedidos a distribuidoras de energia nas áreas da Sudam (região Norte) e da Sudene (Nordeste) fossem revertidos em tarifas menores para os consumidores dessas regiões.
Embora em tese pudesse causar uma redução de 2,1% na tarifa de luz, a medida impactaria as distribuidoras que atuam nas duas regiões, como Equatorial, Energisa e Neoenergia, com redução de taxa de retorno.
A medida, segundo distribuidoras e especialistas, poderia distorcer a base de cálculo e gerar assimetrias entre concessionárias de diferentes regiões do País.
Com isso, após críticas do setor elétrico, o relator da MP excluiu do texto, durante a tarde, dispositivos sobre benefícios tributários nas regiões Norte e Nordeste e o que isenta microgeração com autoconsumo local da taxa de R$ 20 a cada 100 kWh.
Procurado pelo NeoFeed para justificar o parecer do relator, o senador Eduardo Braga não retornou ao pedido de entrevista.