Não foi desta vez que foi oficializada a venda da primeira estatal de saneamento inteiramente privatizada desde a aprovação do marco legal do setor (Lei nº 14.026/2020), que entrou em vigor em julho de 2020.

Um despacho de última hora assinado pela conselheira substituta Ana Cristina Moraes, do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS), impediu a assinatura da venda da estatal gaúcha Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento) para o consórcio Aegea, que havia arrematado a empresa num leilão realizado em dezembro passado. A assinatura deveria ter ocorrido na sexta-feira, 7 de julho.

A interminável disputa judicial reflete as dificuldades enfrentadas pelo governo gaúcho para oficializar a venda da Corsan. Desde que a Aegea pagou R$ 4,151 bilhões, com ágio de 1,15% sobre o preço mínimo estabelecido pelo edital, em leilão realizado na B3, em São Paulo, a privatização da Corsan está bloqueada pela Justiça.

Horas antes da assinatura de venda, a conselheira substituta do TCE-RS aceitou uma representação movida pelo procurador-geral do Ministério Público de Contas (MPC), Geraldo Da Camino, para que a oficialização da venda aguarde o posicionamento em definitivo do TCE, previsto para 18 de julho.

Além do MPC, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) e o Sindiágua, sindicato dos trabalhadores gaúchos do setor de saneamento, vêm obstruindo na Justiça a concretização da operação.

Atualmente com cerca de 6 mil funcionários, a Corsan é uma sociedade de economia mista de capital aberto, sediada em Porto Alegre. A estatal atende 6 milhões de pessoas, cerca de dois terços da população do estado. A empresa oferece cobertura de 96,9% de acesso à água e de apenas 19,3% de tratamento de esgoto.

“Essa demora não é positiva para a população, que está sendo atendida numa área essencial, como saneamento, por uma empresa que está no limbo desde a venda, há sete meses”, lamenta Percy Soares, presidente da Abcon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto).

Segundo ele, há uma grande expectativa de como se dará a gestão da primeira estatal privatizada no setor. “O primeiro caso é sempre mais complicado, por isso vai ser interessante acompanhar o exemplo da Corsan para ver como replicar”, diz Soares.

Planos adiados

Parte da disputa judicial envolvendo a Corsan se deve aos riscos envolvendo a venda.

Um deles é o passivo previdenciário de R$ 943 milhões da Corsan, que inclui prejuízos do plano de pensão e obrigações assumidas com o plano de saúde dos empregados, o que explica a mobilização do Sindiágua desde que o governador Eduardo Leite (PSDB) anunciou a intenção de privatizar a estatal.

Há também o risco de judicialização, pois 198 dos 317 municípios atendidos pela Corsan não assinaram os termos de regularização de seus contratos com a empresa gaúcha, conforme exigência do marco legal de 2020.

Com isso, esses municípios - que somam 38% da receita da Corsan - podem abrir mão do contrato com a nova empresa, o que obrigaria a Aegea de ter de buscar outros municípios para atender a proposta oferecida em leilão.

A Aegea foi a única concorrente a apresentar proposta no leilão. Como já opera uma parceria público-privada (PPP) com nove municípios da região metropolitana de Porto Alegre, a empresa viu ganhos em incorporar a Corsan.

“Com a desestatização, estão previstos investimentos de cerca de R$ 13 bilhões na Corsan nos próximos 10 anos a fim de garantir maior eficiência operacional e atendimento à população”, afirmou a Aegea, em nota divulgada antes da suspensão da assinatura de venda da estatal. A empresa preferiu não se manifestar após a decisão do TCE-RS.

O grupo já tem pronto um plano de ação dividido em três eixos. O primeiro prevê 356 intervenções nos 317 municípios atendidos pela Corsan.

O segundo planeja a criação de um novo sistema de tratamento e dispersão de esgoto no litoral norte gaúcho. A terceira frente, chamada de Plano de Resiliência Hídrica, prevê a execução de obras para combater a escassez de água.

Maior grupo privado do setor de saneamento do país, a Aegea opera ativos de água e saneamento em 178 municípios de 13 estados brasileiros, atendendo aproximadamente 26 milhões de pessoas.

O grupo registrou R$ 2,4 bilhões de lucro líquido no primeiro trimestre de 2023, uma alta de 15,3% em comparação ao 1º trimestre de 2022.

No mês passado, a Aegea anunciou duas emissões de debêntures, no valor de R$ 5,5 bilhões, para investir na operação Águas do Rio, empresa do grupo que venceu o leilão de dois blocos de privatização  da estatal fluminense Cedae, em 2021. A empresa deverá investir R$ 30 bilhões no negócio por 35 anos.

Na semana passada, Alfredo Setubal, CEO da Itaúsa – holding controladora do Itaú Unibanco que tem uma participação de 12,88% no grupo de saneamento – revelou que a Aegea está se preparando para abrir capital.

Governo acuado

Enquanto a privatização da Corsan segue em suspenso, o governo federal corre contra o tempo para apresentar até terça-feira, 11 de julho, uma proposta alternativa aos dois decretos baixados em abril pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com alterações no Marco Legal do Saneamento, que foram rejeitados pelo Congresso Nacional.

O prazo foi estipulado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para evitar que o plenário votasse um projeto de decreto legislativo que suspende as medidas assinadas pelo presidente.

Um dos decretos presidenciais rejeitados pelos parlamentares permitia que empresas estatais prestassem serviços de saneamento sem licitação em região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião.

O outro decreto diz respeito à comprovação da capacidade econômico-financeira do prestador de serviço, exigida pelo Marco Regulatório. No decreto, o governo permitiu que as empresas estais comprovassem, até o fim de 2025, a salubridade financeira "por meio de contratos provisórios não formalizados, ou de contratos, instrumentos ou relações irregulares ou de natureza precária".

“O setor aguarda com curiosidade para saber quais as alternativas que o governo pretende trazer para a mesa de negociação”, diz Soares, da Abcon.

Segundo ele, a exigência de comprovação de capacidade econômico-financeira é essencial, pois tira os prefeitos de municípios servidos por essas empresas da zona de conforto.

“Preocupa a possibilidade de o governo flexibilizar a metodologia para que essas empresas estatais comprovem ter condições de obter investimento, principalmente quando não prevê consequências”, conclui o presidente da Abcon.

Após a publicação da reportagem, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE-RS) soltou nota informando que a PGE-RS, o governo estadual  e a Corsan "protocolaram pedido de suspensão da nova medida cautelar, demonstrando novamente a regularidade de todo o processo da desestatização e a necessidade de sua conclusão para que seja possível dar início aos investimentos objetivando o atendimento das metas estabelecidas no Novo Marco Legal do Saneamento".