Somos espectadores de uma era marcada por avanços tecnológicos: inteligência artificial, blockchain, criptomoedas e tudo que a descentralização pode oferecer sob o selo da web 3.0.

Uma vasta – e cíclica – onda de novas soluções trazem consigo variadas promessas de disrupção, seja em transações financeiras supranacionais, seja em arte digital. Essa última, alçada a bem insubstituível por meio de tokens não fungíveis, os já famosos “NFTs”, que ganham espaço agregando valor a ativos intangíveis quando atrelados a uma cadeia de consenso – as também populares blockchains – o que lhes confere exclusividade e, consequentemente, escassez.

O fomento do uso de NFTs e a expansão de ambientes digitais interativos (como os metaversos) têm multiplicado aplicações práticas como utility tokens, fans tokens, equity, payment, security e aplicações vinculadas a produtos físicos, agregando autenticidade e rastreabilidade de produtos originais.

Além de todo o potencial para arte, música e terrenos digitais, os NFTs têm tido um protagonismo peculiar como instrumento de combate à pirataria, auxiliando o poder público e os detentores de direitos relativos a rastrear e identificar produtos pirateados, tornando esse combate mais assertivo.

Consciente desse movimento, entidades, blocos e organizações atuantes no ecossistema da propriedade intelectual, incluindo a União Europeia, têm unido esforços para fazer uso da tecnologia blockchain para permitir a rastreabilidade de um produto autêntico por meio de toda a cadeia de fornecimento. Isso significa mais poder aos atores envolvidos no combate da contrafação.

Porém, para entender o papel dos NFTs em uma batalha tão antiga quanto a própria propriedade intelectual, é necessário entender o poder que a web 3.0 dá aos usuários, por meio de modelos de negócio descentralizados e cada vez mais descoladas de empresas, instituições ou nações. É justamente nesse descolamento que reside o contraponto com o cenário centralizado da web dita 2.0.

A estrutura da tecnologia de contabilidade distribuída (DLT), característica nativa do blockchain, desponta pela sua transparência, segurança e irrevogabilidade. As transações realizadas nesse âmbito são agrupadas em blocos, armazenados em uma rede descentralizada e compartilhados entre os seus integrantes.

Esse método permite, também, que os tokens sejam mantidos e comercializados com segurança de um titular para outro, de modo que um ativo digital transacionado, associado a um token, é gerido por um contrato inteligente – ou smart contract – e depositado em uma carteira digital.

Quando criados e geridos dentro desse ecossistema, os tokens servem como identidade única, intransferível e digital de um item antes físico ou já nato-digital, assegurando a autenticidade daquele conjunto de “zeros e uns”. Ou seja, o ativo garante a posse de um bem – digital, ou representativo-digital – exclusivo, que nenhuma outra pessoa possui, além da trilha de auditoria imutável que inviabiliza a eventual intervenção ilícita de terceiros, seja para mudança, seja para cópia.

Quando vinculados a um item físico, portanto, os NFTs lhes transferem as mesmas características, despontando como armas eficazes na batalha contra produtos contrafeitos.

Quando vinculados a um item físico, os NFTs lhes transferem as mesmas características, despontando como armas eficazes na batalha contra produtos contrafeitos

A perda de arrecadação dos tributos legalmente instituídos, o aumento de custo na cadeia produtiva, e verbas públicas e privadas alocadas em frentes de combate às práticas ilegais são malefícios conhecidos e quase seculares que decorrem desse ecossistema de ilicitude capitaneado pela pirataria. Porém, para o bem ou para o mal, onde há valor há oportunidade. E a valorização dessa nova leva de ativos intangíveis não foge à regra.

Em uma visão tradicional da contrafação, consumidores que adquirem produtos falsificados, conscientes ou não da sua origem, ficam sujeitos a vícios e defeitos, com potencial lesivo à saúde. Os produtos pirateados não passam pelo crivo das agências reguladoras e estão fora das esteiras de controle da qualidade, que são padrão nos procedimentos formais de fabricação.

O mesmo racional se aplica no âmbito digital. A pirataria de produtos e ativos digitais está diretamente associada a vulnerabilidades decorrentes do uso de malwares, que sujeitam o usuário a ataques de invasão ao seu dispositivo e podem ocasionar acessos indevidos aos seus arquivos e informações.

No rol de afetados, contudo, o destaque vai para os titulares dos direitos dos produtos pirateados, sejam eles autores, desenvolvedores, empreendedores ou qualquer outro ator. São eles que investem seus recursos em segurança, pessoas e tecnologias, para o desenvolvimento de produtos inovadores, gerando renda e receita, mas têm seu lucro severamente impactado pela prática criminosa.

Segundo a pesquisa State of the Internet, da empresa de cibersegurança americana Akamai, o Brasil assumiu o 5º lugar entre os países que mais consomem pirataria, computando 4,5 bilhões de streams e downloads não autorizados entre janeiro e setembro de 2021.

Combater crimes contra a propriedade intelectual é uma árdua tarefa do Estado e dos titulares dos direitos, especialmente na internet. Todavia, da mesma forma que a difusão tecnológica propicia a propagação do crime, na outra mão, disponibiliza recursos cada vez mais eficazes para o seu combate.

Quando falamos em obras intelectuais, especialmente no setor audiovisual, já é trivial a adoção de recursos de rastreamento que permitem ao titular monitorar e detectar a infração de direitos autorais e outras ações ilícitas na rede.

No mesmo sentido, as principais plataformas de publicação de conteúdos audiovisuais disponibilizam meios de proteção de direitos e remoção de conteúdo infringente. É o que acontece com o Content ID do Youtube, que pode ser classificado como um sistema de impressão digital, usado para identificar e gerenciar o conteúdo protegido por direitos autorais.

Ele permite que o titular do direito violado aplique uma reivindicação de autoria, que pode resultar em uma das ações (a depender da opção configurada na ferramenta): (i) bloquear o uso, derrubando conteúdo violador; (ii) monetizar o vídeo, veiculando anúncios a ele; (iii) rastrear estatísticas de visualização do vídeo.

Como medida de enforcement relacionada aos direitos de propriedade intelectual, a utilização do blockchain já surge entre os meios disponibilizados aos detentores dos direitos para a adoção de medidas concretas contra os infratores, tanto para evitar novas violações dos seus direitos, quanto para recuperar perdas delas incorridas.

Como medida de enforcement relacionada aos direitos de propriedade intelectual, a utilização do blockchain já surge entre os meios disponibilizados aos detentores dos direitos

O blockchain também já se mostrou eficiente no processo de proteção de ativos por meio da inserção de marcas d’água digital que, uma vez incorporadas ao conteúdo, permitem ao detentor da tecnologia determinar quem é o titular legal do ativo. O processo de combate à pirataria nesse modelo é incentivado aos usuários da rede por recompensas monetárias toda vez que adotam postura colaborativa na identificação de conteúdo pirateado.

O que se espera é intensificação da aplicação dos NFTs ao combate à pirataria. Inclusive, é nesse sentido, como já apontado, que a União Europeia (UE) vem direcionando os seus esforços desde 2018. Após promover o evento que denominou “blockathon”, voltado a projetos de combate a produtos falsificados, instituiu o Fórum Blockathon Anti Falsificação, agregando pessoas e organizações com o propósito de construir e fornecer uma infraestrutura antifalsificação aos titulares de direitos.

Os estudos envolvendo a tecnologia também estão há um bom tempo no alvo da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI). Em 2018, o órgão estabeleceu a Blockchain Task Force, no âmbito do Comitê de Normas da OMPI, com propósitos que incluem, entre outros, a exploração da possibilidade de utilizar a tecnologia blockchain nos procedimentos de proteção dos direitos de propriedade intelectual, além do desenvolvimento de modelos de referência para a utilização das tecnologias no campo da PI.

Segundo dados recentes da EUIPO, uma versão do projeto da sua solução antifalsificação baseada em blockchain que está prestes a ser lançada tem por objetivo produzir um “gêmeo digital” do produto físico, por meio de NFTs (Non Fungible Tokens). Com uma solução blockchain própria, a União Europeia pretende autenticar produtos físicos através dos tokens digitais.

Os dados que devem ser incluídos no “gêmeo digital” são definidos pelo titular do direito e programados diretamente na NFT. Nesse sentido, a solução proposta pela EUIPO deve propiciar a fiscalização e a autenticação de produtos, tanto pelos consumidores quanto pelas agências reguladoras. Uma medida que conjuga a atuação da sociedade e do Poder Público ao titular do direito.

A pirataria no contexto da propriedade intelectual é uma força reativa que existirá enquanto existir o direito intelectual sobre algo. Porém, em um contraponto, a inovação é uma força inevitável. Caberá à tecnologia – e a todos os atores desses mercados – se municiar de recursos para combater a pirataria ou desidratá-la, pois se a extinção é utópica, a irrelevância é uma meta tangível.

* Patricia Peck é CEO e sócia do Peck Advogados, Conselheira Titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD) e Professora da ESPM.

Este artigo foi escrito em conjunto com:

Ana Silvia de Moura Leite Piergallini é advogada especialista em propriedade intelectual, líder na área de Propriedade Intelectual e Marketing Legal do Peck Advogados.

Antonio Alves de Oliveira Neto é sócio e advogado especialista em direito digital e em contratos e responsável pela área de Contratos, Inovação, Legal Design, Marketing Legal e Propriedade Intelectual do Peck Advogados.