Para mim está bem claro que a crise causada pela pandemia vai provocar uma profunda reestruturação econômica, social e organizacional. Hoje, as empresas estão preocupadas com sua sobrevivência imediata. É o instinto de sobrevivência que fala mais alto. Vale para todas as espécies vivas, e claro, para as empresas.
Mas as que vencerão no pós-crise (toda crise passa!) serão as que, mesmo voando dentro de nuvem, sem instrumentos, pensam no mundo que virá depois. Como será este novo mundo e que papel poderei desempenhar nele?
Como podemos classificar o ambiente de negócios em uma era antes e depois da Internet, que gerou muitos negócios e empresas, que já estão valendo na casa do trilhão de dólares, impensáveis há duas décadas atrás, devemos imaginar que o Covid-19 vai provocar esta mesma situação: teremos a era antes e depois da pandemia. O “new business as usual” pós-pandemia será bem diferente do de antes.
A eclosão da pandemia e a paralisação da economia foi uma ação sem precedentes. Tivemos pandemias anteriores, mas nunca desligamos a economia global nesta escala. O grande desafio é que podemos paralisar a economia de forma fácil, através de decretos e portarias. Mas ela não é religada por portaria. E resumo, desligar é fácil, religar não!
A retomada econômica é uma incerteza, pois nunca passamos por desligar o planeta como fizemos dessa vez. Alguns países e setores poderão ser reativados mais rapidamente que outros. Por outro lado, alguns setores não têm demanda reprimida e, portanto, o máximo que poderão chegar em determinado tempo é atingir a sua antiga capacidade de produção.
Um exemplo simples são os restaurantes. Se você interrompe sua operação, quando ele for reativado, o máximo que ele poderá alcançar no futuro é seu antigo faturamento. Não tem demanda reprimida. As pessoas que não puderam almoçar nele, por estarem em quarentena em casa, não almoçarão duas vezes por dia para recuperar os almoços perdidos.
Como a economia é um todo interligado e os países estão interconectados, por mais que alguns setores se reaqueçam rápido, o efeito global continua sendo crítico, pois a maioria dos setores e países vai se recuperar mais lentamente. A atividade econômica vai demorar algum tempo para se normalizar.
Durante muito tempo já se ouve falar em transformação dos negócios pela tecnologia digital, muitas vezes chamada de transformação digital. Uma empresa digital é ágil, resiliente e facilmente adaptável. Muita coisa foi falada em eventos e muitas empresas subiram nos palcos se dizendo digital. Seus executivos usavam belos slides com figuras que mostravam a diferença entre linearidade e exponencialidade e como tomariam decisões em um ambiente VUCA, que significa um ambiente de volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade.
Creio que esta foi a primeira grande lição que servirá de base para o mundo pós-crise: as empresas terão que ser sim digitais
A questão é que, ao saírem do palco e enfrentaram exatamente este cenário, viu-se que a tal transformação digital era mais narrativa que realidade. Creio que esta foi a primeira grande lição que servirá de base para o mundo pós-crise: as empresas terão que ser sim digitais. Digital implica em ser resiliente. Uma empresa digital consegue se ajustar e se adaptar a um cenário de mudanças rápida, com velocidade adequada.
Vamos dar um exemplo de empresa digital na essência. A Ant Financial, empresa financeira chinesa que surgiu de um spin off da Alibaba. Em apenas cinco anos após seu lançamento alcançou um bilhão de usuários. É um número dez vezes maior que o maior banco americano. Atua em uma grande variedade de negócios como empréstimos aos consumidores, seguro-saúde, classificação de crédito e assim por diante.
Mas, ao contrário dos bancos tradicionais, a Ant é digital por excelência. Tem 10% dos funcionários dos maiores bancos do mundo e suas atividades operacionais são geridas e operadas por tecnologias digitais baseadas em IA. Não têm gerente de contas para aprovar empréstimos, analistas para prestar consultoria financeira nem auditores para autorizarem as despesas médicas de um segurado. Sem as limitações operacionais das empresas tradicionais, a Ant pode competir de forma ágil, crescendo e diminuindo o volume de suas operações de acordo com a demanda.
Muitas empresas pós-Internet atuam dessa forma, como Google, Facebook e outras. Elas não usam processos tradicionais operados por gestores, funcionários operacionais e atendentes de serviços aos clientes. Usam algoritmos de IA e todo valor que obtemos delas é entregue por estes algoritmos.
Talvez a primeira grande mudança para as empresas pós-Covid seja de entenderem que o “ser digital” não é apenas o mundo do Google e Facebook, mas de todas as organizações que queiram ser resilientes. Assim, a transformação dos negócios para tecnologia digital, ser uma empresa digital, deixa de ser uma opção ou uma futura ação (“ainda não é o momento, diziam muitos executivos...) para ser a base operacional da empresa.
O retorno às atividades depende da retomada da cadeia de valor no qual a empresa faz parte. Essa cadeia é composta por diversas empresas, que atuam em partes diferentes, como fornecedores ou clientes. Na crise, vimos que muitas empresas, apesar de discursos do tipo “fazemos parte de um ecossistema e nossos fornecedores são parceiros importantes” atuaram de forma completamente egoísta, asfixiando os seus fornecedores.
A crise passa, mas, as consequências das atitudes tomadas, vai deixar marcas. Acredito que no mundo pós-Covid serão essenciais declarações de propósito que definam não apenas a relação com os funcionários, mas como todos os stakeholders, e que deverá obrigatoriamente ser parte do DNA da organização.
Se o conceito de parceria não aguentar um “stress test”, como uma crise, a empresa terá dificuldades de se integrar a um ecossistema. Assim, cada vez mais ecossistema integrados e colaborativos passarão ser o novo contexto de negócios. A colaboração passa a ser uma exigência para estar no negócio.
A parada brusca da economia e atitudes restritivas à movimentação de pessoas, como quarentenas, exigiu mudança de hábitos. Trabalhar de em casa ou de qualquer lugar e não apenas no escritório foi uma dessas mudanças. Agora que vimos que é possível fazer isso, será que ainda obrigaremos as pessoas perderem várias horas por dia se deslocando de casa para escritório e retornando para casa, quando o trabalho não precisar deste deslocamento?
Isso vai obrigar a repensar o conceito de escritório e local de trabalho. Local de trabalho passa a ser onde a pessoa está e não em um prédio com endereço fixo. A empresa pós-Covid será uma empresa preparada para “Anywhere working” onde as pessoas poderão trabalhar de onde for necessário, inclusive nos escritórios em determinadas situações.
O presencial não morre, mas deixa de ser obrigação. Isso vai aumentar a velocidade de evolução das tecnologias de videoconferência e provavelmente com adoção mais rápida de VR/AR, criarão ambientes cada vez mais próximos do escritório real. Com isso, as legislações e os processos organizacionais e de gestão vão mudar.
Veremos aceleração de uso de tecnologias que demandem menos uso de contato humano, com veículos de entregas autônomos e drones se tornando comuns
A sociedade também acelerou o uso de acesso digital para atender suas necessidades. O comércio eletrônico, o delivery de refeições e o maior uso de transações bancárias eletrônicas expandiram o hábito de uso digital. E, com isso, esse processo vai se acelerar. Provavelmente veremos também aceleração de uso de tecnologias que demandem menos uso de contato humano, com veículos de entregas autônomos e drones se tornando comuns.
Setores inteiros serão redesenhados. O sistema de saúde será um dos principais a serem transformados. A tecnologia vai permitir que ele seja muito mais ágil e adaptável do que é hoje. O modelo atual é muito antigo, baseado em deslocamentos físicos para consultórios, clínicas e hospitais. A tecnologia poderá transformar o setor por completo. Educação também será outro setor que deverá ser reimaginado. Também é baseado em um modelo antigo, de deslocamento para prédios onde aulas presenciais são dadas.
Nestes dois setores, não deixaremos de ter médicos e hospitais, mas com uso de tecnologias wearables e IA, o setor poderá ser muito mais digital. Talvez nem precisemos mais de consultórios, como hoje. Educação também deverá deixar de ter aulas similares a que tínhamos no século 19. Teremos que repensar quando o presencial é necessário. Para assistir a uma aula será necessária? Creio que não.
Com tecnologias como IA e assistentes virtuais, VR/AR, as aulas não precisam ser feitas salas de aula. Mas para criar, debater ideias, gerar insights, a densidade de cabeças pensantes faz diferença. Assim, talvez o modelo de educação se inverta para termos as aulas em qualquer lugar e os espaços físicos ficarão destinados para ideação e colaboração.
Essas são apenas ideias preliminares. Muita coisa vai mudar. Aliás, no atual contexto as coisas têm validade de poucos dias. Será bem provável que no mundo de negócios pós-Covid as mudanças continuem sendo rápidas. Em vez de planejamentos anuais e revisões trimestrais, faremos planejamentos trimestrais e revisões diárias.
Devemos mudar as regulações. Devemos pensar em como o mercado de trabalho vai ser constituído. Que funções irão se transformar, quais deixarão de existir e quais serão criadas? Como formar talentos para um mundo em mutação constante, onde as profissões passam a ter durabilidade curta, de poucas décadas?
Estamos voando dentro de nuvens, sem instrumentos. Na aviação ocorrem muitos acidentes, e dentre eles destacam-se aqueles causados pelas ilusões que os pilotos experimentam durante o voo, sem as reconhecerem como tais. No voo, o problema da orientação é muito maior do que no chão, porque o corpo pode ser influenciado por uma variedade de impressões ilusórias devido às acelerações impostas sobre ele pelo movimento do avião.
Estudos realizados estimaram que 14% dos acidentes fatais na aviação foram consequência direta de fenômenos ilusórios. Além disso, assinalou-se nesses estudos que todos os pilotos são susceptíveis à ilusão e as tem experimentado durante o voo. Isto é chamado de desorientação espacial. Os gestores, como pilotos de suas empresas, não podem, ter isso. Caso contrário, suas empresas desaparecerão.
Para os pilotos, o perigo de desorientação é resultado do pânico oriundo de conflitos de informação sensitiva. Assim, recomendações como “Se” aquilo que você “vê" é diferente daquilo que você realmente "sente", acredite nos instrumentos. Eles são essenciais. No ambiente de negócios, os instrumentos serão cada vez mais digitais, a empresa cada vez mais digital e as decisões baseadas em instrumentos.
Temos grandes desafios pela frente. Religar a economia, a empresa e a cadeia de valor não será simples. Não acontecerá pela intuição. Mas, acredito que se as empresas reconhecerem que a transformação digital deve sair do PPT para o mundo real, elas serão vencedoras. As empresas pós-pandemia serão essencialmente digitais e centradas em IA.
*Cezar Taurion é Partner e Head of Digital Transformation da Kick Corporate Ventures e presidente do i2a2 (Instituto de Inteligência Artificial Aplicada). É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral. Antes, foi professor do MBA em Gestão Estratégica da TI pela FGV-RJ e da cadeira de Empreendedorismo na Internet pelo MBI da NCE/UFRJ.