Acabei de ler o livro “The Globotics Upheaval”, de Richard Baldwin. Ele aborda o fenômeno convergente da globalização de serviços e robótica, que já estão e irão afetar mais ainda de forma significativa a economia e os empregos nas próximas décadas. Sua leitura deixa claro alguns desafios e um deles é que os robôs transformarão a maioria das profissões. Algumas serão eliminadas, mas a maioria será transformada, com robôs (e entende-se aqui principalmente robôs de software) e humanos atuando em colaboração. Muitas profissões demandarão menos pessoas envolvidas, o que aliás já acontece com os atuais níveis de automação.
Em complemento ao livro, me aprofundei em um estudo da McKinsey, “A future that works: automation, employment and productivity”, que aliás recomendo enfaticamente que seja lido com atenção. O estudo mostra que cerca de 5% das atividades profissionais atuais poderão ser totalmente eliminadas, mas a maioria (60%) terá cerca de 30% das tarefas automatizáveis. O que isso significa? Que as atuais profissões não desaparecerão totalmente, mas serão muito modificadas. O sistema educacional e os processos de contratação e retenção de talentos nas empresas precisarão ser revistos.
As atividades profissionais demandarão em maior ou menor grau quatro habilidades: (a) comunicação, (b) pensamento, (c) sociabilidade e (d) habilidades físicas. A habilidade de comunicação exige que as pessoas entendam o que as outras pessoas estão dizendo a elas, mesmo que não seja de forma direta.
A inteligência artificial (IA) já atua neste campo e como exemplo vemos os assistentes pessoais, como Alexa, Siri, Cortana e Google Assistant. De maneira geral a tecnologia atual já está no nível dos humanos no tocante à compreensão, com exceção de determinados contextos em que nuances linguísticos, sarcasmos e ironias ainda fazem com que os seres humanos tenham um nível muito maior de compreensão. As máquinas ainda se complicam com ironias e sarcasmos.
O item (b) pensamento, tem amplo espectro e varia da criatividade ao pensamento lógico e racional. Em criatividade, improviso e imaginação os seres humanos ganham fácil. As máquinas são boas em buscar informações e reconhecer padrões conhecidos. Tem dificuldades em reconhecer novos padrões.
Um exemplo interessante das diferenças entre máquinas e humanos é o Google Brain. Ele analisou milhões de vídeos YouTube e reconheceu um novo padrão de imagens, gatos. A partir deste reconhecimento, ele começou a identificar todos os gatos que apareciam nos vídeos. Mas ele não sabia que era um gato. Os humanos é que classificaram este padrão de imagens como gato.
As atividades que já se tornaram praticamente robotizadas, como atendimento de call center, não terão espaço na disputa com sistemas de IA
Nas habilidades sociais ou sociabilidade (c) as máquinas ainda perdem feio. Com IA você consegue reconhecer emoções das pessoas, analisando suas expressões, mas não tem ideia do que seja esta emoção. Vale a pena ler o artigo “Neural nets model audience reactions to movies” que mostra um experimento da Disney no treinamento do reconhecimento de emoções de pessoas diante de um filme. Com o treinamento, o algoritmo foi capaz de prever qual seria a expressão da audiência para determinadas cenas, antes que elas fossem projetadas.
E temos as (d) habilidades físicas. A destreza física é parte importante de algumas atividades profissionais e de maneira geral em muitas destas atividades os robôs são mais eficientes. As linhas de montagem robotizadas mostram claramente isso. As dificuldades estão em identificar objetos desconhecidos e movê-los em terrenos que não tenham sido mapeados anteriormente.
A capacidade de ouvir, refletir e criar vão tornar a função humana diferenciada. Assim, este cenário vai criar novas funções, eliminar outras e transformar as demais. É claro que muitas atividades serão afetadas pela automação. No varejo podemos ter lojas 100% automatizadas (como a Amazon Go) e muito menos pessoas trabalhando nelas. Nas redes de fast food já vemos robôs preparando hamburgueres e o self-service está se tornando padrão. A leitura do artigo “Robot-Powered Pizza, Anyone? How Automation Is Transforming The Fast-Food Industry” nos mostra o nível de automação que já chegamos hoje.
Em resumo, as atividades que já se tornaram praticamente robotizadas como atendimento de call center, consultores financeiros e de vendas, que seguem rigidamente scripts pré-definidos, não terão espaço na disputa com sistemas de IA. Afinal seguir um esquema pronto uma máquina pode fazer e até melhor, pois pode considerar inúmeras outras variáveis, consultando em tempo real informações dispersas em dezenas de bancos de dados. Também existe a possibilidade de funções desaparecerem porque seus negócios desapareceram. Não temos mais vendedores de enciclopédias! No futuro, com veículos autônomos, não teremos mais motoristas de Uber, caminhão e taxistas.
Setores tão diferentes quanto medicina e bancário serão afetados. No setor financeiro o artigo “Citi issues stark warning on automation of bank Jobs” indica que haverá uma substituição das atividades operacionais pelas máquinas. Na medicina, veremos que IA e médicos trabalharão em cooperação. O artigo “Machine Learning in Medicine” mostra claramente as atuais fronteiras entre máquinas e humanos no exercício das atividades médicas.
A rápida evolução da IA traz impactos tão significativos que ainda não percebemos sua amplitude. Não temos ideia de como será o mercado de trabalho em 2050, mas sabemos que a IA e a robótica vão mudar quase todas as modalidades de trabalho atuais, transformando as carreiras e profissões como as conhecemos hoje. Jeff Bezos, da Amazon, disse: “Provavelmente é difícil exagerar o impacto que os próximos vinte anos terão na sociedade.”
Qual será o papel da IA na sociedade? Os robôs substituirão pessoas? As pessoas que executam tarefas repetitivas verão estas tarefas serem substituídas por robôs. Mas, o mais provável, é que a IA venha a aumentar o desempenho humano, automatizando certas partes de uma tarefa, permitindo que os indivíduos se concentrem em aspectos mais "humanos" que exigem habilidades empáticas, sociais e inteligência emocional.
No futuro próximo, trabalhadores e máquinas trabalharão em conjunto, cada um complementando os esforços do outro
No futuro próximo, trabalhadores e máquinas trabalharão em conjunto, cada um complementando os esforços do outro. As organizações de RH terão que desenvolver novas estratégias e ferramentas para recrutar, gerenciar e formar uma força de trabalho híbrida humano-máquina. É uma mudança significativa nas formas de como RH seleciona, contrata e avalia profissionais. Demanda uma redefinição das funções atuais e a acomodação de novas funções, que nem existem hoje no vocabulário de RH.
Dado a forma como os modelos de trabalho tradicionais, definições de carreira e o setor RH estão arraigados, a reengenharia do trabalho em torno da IA será um grande desafio. Vai demandar novas formas de pensar sobre empregos, cultura empresarial, tecnologia e, mais importante, pessoas.
A IA está se entranhando na sociedade da mesma forma que os smartphones se entranharam na nossa vida. Surgiram como novidade, com o iPhone em 2007, afetaram no início alguns setores, destruindo empresas sólidas como Nokia, BlackBerry e Motorola e depois se espalharam transformando todas as nossas atividades diárias. Hoje permeia nossas vidas e é quase que um órgão do nosso corpo. Nada fazemos sem eles.
A IA vai se entranhar da mesma forma. Começou com algoritmos de recomendação, se insere nos apps que usamos e aos poucos vai fazer parte da nossa vida. Estaremos lidando com IA de todas as formas no nosso dia a dia, de assistentes pessoais a médicos virtuais. Nos fast foods e dirigindo veículos autônomos.
Veremos reações contrárias de setores afetados, como vimos os dos taxistas contra o Uber. Veremos agora motoristas de caminhões e do Uber protestando contra veículos autônomos. Um artigo mostra essa possibilidade: "Anxiety about automation and jobs: Will we see anti-tech laws?”. A regulação não pode e nem deve ser usada para impedir o avanço da tecnologia e consequentemente o progresso de um país, mas devemos nos preocupar com seus efeitos nas pessoas que serão afetadas por ela.
Portanto, é absolutamente essencial termos o senso de urgência com relação a estas questões. Motoristas não serão mais necessários (como os ascensoristas desapareceram) e outras funções serão criadas, como engenheiros de Machine Learning (ML). O desafio é a transição. Será possível fazer a transição de motoristas para engenheiros de ML? Provavelmente não, pois as habilidades demandadas são muito diferentes.
A transição é um desafio que a sociedade tem que enfrentar. Um estudo feito nos EUA mostra os efeitos da automação na profissão de motorista: “Stick Shift: Autonomous Vehicles, Driving Jobs, and the Future of Work”. Embora reflita a sociedade americana, podemos e devemos atualizar um estudo similar para o Brasil.
O Brasil não está em outro planeta. Se não tivermos estudos e ações concretas, poderemos sofrer, no futuro breve, uma crise de grandes dimensões. Nós, humanos, que devemos controlar a IA e criar os mecanismos que nos permitam usufruir de seus benefícios, mitigando seus riscos. Não pode ser um jogo de humanos contra máquinas, mas sim de humanos e máquinas.
*Cezar Taurion é Partner e Head of Digital Transformation da Kick Corporate Ventures e presidente do i2a2 (Instituto de Inteligência Artificial Aplicada). É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral. Antes, foi professor do MBA em Gestão Estratégica da TI pela FGV-RJ e da cadeira de Empreendedorismo na Internet pelo MBI da NCE/UFRJ.