Em 1996, faz mais de 20 anos, li um livro fantástico chamado “Só os Paranoicos Sobrevivem”, do então CEO da Intel, Andrew Grove. No livro, que considero um clássico em gestão e skills gerenciais e de liderança, ele mostra que as empresas devem estar constantemente alertas para mudanças inesperadas, tendo que se adaptar, muito rapidamente, ou simplesmente irão desaparecer.
Grove fala em Ponto de Inflexão Estratégico, que pode ser desencadeado por qualquer coisa, seja uma mudança na regulação ou uma inovação tecnológica, à primeira vista, distante do seu atual “core business”. Quando um Ponto de Inflexão Estratégico é alcançado, as regras comuns dos negócios, o “business as usual”, perdem a validade.
Gerenciado corretamente, no entanto, um Ponto de Inflexão Estratégico pode ser uma oportunidade de vencer no mercado e emergir mais forte do que nunca. Essa lição continua mais válida que nunca nos dias de hoje, com a disrupção digital batendo às portas. As regras do jogo de negócios estão sendo reescritas e as atuais irão desaparecer em breve.
O que estamos vivenciando é a inclusão da digitalização no cerne dos produtos e serviços. O valor da experiência dos usuários está cada vez mais “data centric” e digital. Empresas tradicionais, com negócios sólidos, defrontam-se com novas regras, para as quais muitas vezes não estão preparadas. As conhecidas fronteiras entre os setores de indústria estão simplesmente se desmanchando. A própria classificação tradicional das empresas em verticais de negócio tendem a perder sentido.
Uma Amazon é tanto um varejista online como offline, com a aquisição da Whole Foods. É também uma empresa de tecnologia, líder em cloud computing. Está operando em logística e meios de pagamento. A empresa fundada por Jeff Bezos é um exemplo prático que as atuais fronteiras entre os setores de negócio estão se desmanchando.
As empresas que dominam setores precisam enfrentar uma nova situação, que é o desafio imposto por empresas que começaram em outros setores. A concorrência já não vem apenas dos competidores tradicionais. O embate entre Amazon e Walmart é emblemático deste cenário.
Vale a pena ler “Amazon vs. Walmart: Which One Will Prevail?”. David Bell, professor de Wharton School, diz que o offline não está morto. Ele simplesmente está se tornando diferente, com o conceito de omnichannel. “Pela minha experiência, as empresas que começaram no mundo digital lenta e seguramente e adicionaram o offline tiveram mais sucesso do que empresas que começaram no mundo offline e adicionaram o digital”, escreveu Bell.
A indústria automotiva também está às vésperas de transformações radicais em seus modelos de negócio e desmanche das atuais fronteiras entre setores. A Tesla, por exemplo, é uma empresa automotiva, de tecnologia ou de energia? Provavelmente é uma empresa de tecnologia e energia que fabrica carros.
A indústria automotiva também está às vésperas de transformações radicais em seus modelos de negócio e desmanche das atuais fronteiras entre setores
Com a combinação de veículos elétricos e autônomos, com adição do crescimento da economia do compartilhar, o conceito de “usar” e não necessariamente “ter”, bem explicado neste vídeo da Singularity University, “Why the Future of Stuff Is Having More and Owning Less”, a atual indústria automotiva vai, provavelmente, no futuro, gerar mais receita dos serviços digitais fornecidos em torno dos veículos que por eles mesmos.
Uma Ford ou GM poderá em vez de vender veículos autônomos, disponibilizá-los para levar pessoas do ponto A ao B, com garantias de seguros para eventuais contratempos. Nesse cenário fluído, qual seria a distinção entre uma Ford, um Uber, uma Localiza e uma Porto Seguro? Que setores colidirão e serão absorvidos por outros?
No novo jogo da sociedade digital, os “core businesses” serão frequentemente redesenhados. Os CEOs devem estar preparados para reconsiderar em que indústria a sua empresa opera e em qual operará em poucos anos. Com as empresas se transformando em empresas de tecnologia, pela inclusão da digitalização nos serviços produtos, as competências digitais se tornarão cada vez mais importantes.
As organizações do século 21 serão empresas de tecnologia com foco em algum serviço específico. Um Airbnb é uma empresa de tecnologia com foco em hospedagem de pessoas. Um banco, por exemplo, será uma empresa de tecnologia com foco em serviços bancários e não uma empresa de serviços financeiros com forte área de tecnologia.
O desafio vem de todos os lados. De empresas que estão em outros setores ou de startups que surgem a todo instante. A indústria fonográfica nunca pensou que uma empresa tecnologia com a Apple fosse uma ameaça. As empresas de telefonia foram surpreendidas pelo surgimento do Skype e WhatsApp. A indústria hoteleira não prestou atenção ao Airbnb em seu início.
Mesmo empresas da internet devem estar antenadas e terem capacidade de reagirem rápido às ameaças. O exemplo, de poucos anos atrás, da rápida reação do Facebook para estrangular o Snapchat, com sua estratégia de snapchatização, mostrou um embate típico da era digital.
Quando um entrante chega, uma empresa existente, mas ágil, reage muito rapidamente. Diferente das empresas tradicionais, que levam muito tempo para reagir e acabam sendo ultrapassadas. O Facebook demonstrou agilidade na resposta e capacidade de execução, praticamente quase estrangulando o Snapchat.
A revolução digital impõe mudanças significativas, como a revolução industrial ocasionou anteriormente. Ela nos deixou a eletrificação da sociedade, as atuais estruturas organizacionais, as especializações e os atuais setores de indústria. A digital vai nos deixar a digitalização da sociedade, e as empresas têm que se preparar para essa mudança, que já está acontecendo.
As atuais defesas não serão barreiras intransponíveis. Os hotéis descobriram que investir e manter ativos (prédios) não foi suficiente para impedir o surgimento de um novo modelo, com Airbnb. Capital financeiro também não é garantia, pois aportes significativos podem alavancar uma startup. Regulação também é móvel, podendo ser mais lenta ou mais ágil em cada país, mas acaba se adaptando.
Os hotéis descobriram que investir e manter ativos não foi suficiente para impedir o surgimento do Airbnb
A questão do Uber no Brasil foi um exemplo. Marca sólida e reconhecida também não é trincheira intransponível. Blackberry foi símbolo de status e hoje não tem mais relevância. E “clientes leais” se mostram muito menos leais. Os clientes dos táxis não eram “leais”, mas mostravam aparente lealdade por absoluta falta de opção. Hoje a terminologia já não é mais “vou pegar um táxi”, mas sim “vou pegar um Uber”.
O que fazer? Esteja um passo à frente do desmanche das fronteiras entre os setores. Não olhe apenas seus competidores diretos, mas observe atentamente aqueles que hoje estão em outros setores ou mesmo startups que, aparentemente insignificantes, podem se tornar uma ameaça ao seu modelo de negócios em pouco tempo.
Obtenha capacitação e fluência digital, e mapeie novamente seus talentos para que a digitalização seja inserida no DNA da empresa. Seja um líder visionário, convença a empresa da urgência da digitalização, monitore paranoicamente potenciais invasores (startups e outros setores), crie suas próprias competências digitais e faça você mesmo o desmanche das fronteiras. Não espere ser desmanchado!