A canção é um tesouro da expressão humana. A conjunção das duas linguagens sonoras mais maravilhosas já criadas pelo homem — a fala e a música. A Quinta Sinfonia de Beethoven não é canção; é música “apenas”. Já a Nona integra à parte orquestral coro e solistas. E eles cantam... canções.
Quando as pessoas falam ao mesmo tempo, vira confusão. De várias melodias cantadas juntas, porém, emerge a harmonia; o oposto do caos. Precisa e equilibrada, a “harmonia” é a maestrina da comunicação entre as cerca de 37 trilhões de células de nosso organismo.
E rege as reações físico-químicas que fazem o coração pulsar, o pulmão respirar, os olhos enxergar, os ouvidos escutar. Graças a essa comunicação, pensamos, sentimos, nos emocionamos. Existimos. Há mais células em nosso corpo do que estrelas na via Láctea! E elas “cantam”.
Pois, vamos tentar escutá-las, propõe o oncologista e escritor Siddhartha Mukherjee, em seu novo livro. Lançado pela Companhia das Letras, “A canção da célula — As descobertas da medicina e o novo humano” vai além de um compêndio de estruturas, construções e mecanismos celulares. É um fascinante convite à uma reflexão mais profunda sobre o que nos faz humanos.
“A célula é a unidade da vida (...) Talvez esse fato defina a importância da história da célula: precisamos compreender as células para compreender o corpo humano. Precisamos delas para compreender a medicina”, escreve ele. “Porém, mais essencialmente, precisamos da história da célula para contar a história da vida e de nós mesmos.”
Como explica Mukherjee, cada célula, no sentido estrito, é uma unidade viva autônoma, uma decodificadora de um gene, “como músicos que numa orquestra leem suas partes numa partitura — a canção individual da célula”, compara ele.
Cada gene, por sua vez, é composto por uma sequência específica de DNA, mensageiro das instruções para a produção de uma proteína. E, as proteínas, resume o médico, são as máquinas moleculares que possibilitam a vida.
“A célula, portanto, converte informação em forma; código genético em proteínas”, escreve. “Um gene sem célula não tem vida — um manual de instruções guardado dentro de uma molécula inerte, uma partitura musical sem músico (...)”
As células trabalham sozinhas, mas também todas juntas, processando e enviando comandos umas para as outras, o tempo inteiro. Nosso organismo só não é um campo anárquico de informações frenéticas, zanzando de lá para cá, porque as células “cantam”.
“A canção da célula” é um livro de relatos. Aos 53 anos, Mukherjee pertence àquele grupo dos médicos bons contadores de história, como foi o neurologista americano Oliver Sacks. A nova obra segue o estilo dos dois trabalhos anteriores do escritor — o magistral “O imperador de todos os males”, de 2010, vencedor do prêmio Pulitzer, e “O Gene”, de 2016, apontado como um dos melhores livros do ano pelo jornal The New York Times.
Agora, Mukherjee descreve a evolução dos conhecimentos acerca da biologia celular. Ele retoma achados históricos, desde a criação dos primeiros microscópicos por Hooke e van Leeuwenhoek, e chega ao presente, com histórias sobre como os avanços científicos vêm revolucionando os tratamentos das doenças; algumas tidas como incuráveis até pouco tempo atrás.
Ele nos conta como a engenharia celular já permite, por exemplo, reprogramar as células de defesa de um paciente vítima de câncer para que, como um míssil teleguiado, elas ataquem e destruam as células doentes.
O médico avança também em direção ao futuro e ao “novo humano” do subtítulo. A criatura que está por vir, frisa Mukherjee, não tem nada a ver com os seres, típicos do imaginário sci-fi — aprimorados pela inteligência artificial, otimizados pela robótica, dotados de infravermelho e que vêm e vão tranquilamente entre o mundo real e o mundo virtual.
O novo humano será reconstruído com células modificadas e “é parecido com você e comigo e sente (basicamente) o que sentimos”, pontua.
E ele vai além: “Uma mulher que sofre de uma depressão duradoura e incapacitante, cujas células nervosas (neurônios) são estimuladas por eletrodos. Um menino que passa por um transplante experimental de medula óssea com células com código genético editado para curar a anemia falciforme (...)"
Mukherjee também fala de seu pai que poderia ter "neurônios implantados, ou com um dispositivo estimulador de neurônios, que teriam estabilizado seus movimentos para que ele não sofresse o tombo que resultou em sua morte.”
A interdependência das células
Quando descritas pela primeira vez, no século 17, pelo cientista inglês Robert Hooke e, algum tempo depois, pelo comerciante de tecidos holandês Antoine van Leeuwenhoek, as células foram apresentadas como blocos unitários, isolados e independentes. Só mais tarde seria descoberta a interdependência entre elas.
“Uma ‘canção’ pode ser uma mensagem tanto interna — um zumbido — como também, externa: uma mensagem enviada de um ser para outro a fim de sinalizar interconexão e cooperação”, descreve o autor.
Canções são cantadas por um grupo, como em um coro; de uma pessoa para outra, para algumas outras ou ainda para multidões. Uma espécie de organização pautada por uma “coletividade cidadã”, como definiu o médico alemão Rudolf Virchow, no século 19.
Aliás, foi ele o primeiro a lançar a ideia de que toda célula procede de outra — “Ominis cellula e cellula”, lembra Mukherjee. A primeira célula humana dá origem a todos os tecidos humanos. E elas se multiplicam em progressão geométrica. De uma nascem duas; de duas, quatro; de quatro, oito... e assim seguem, “uma vida dentro da vida. Um ser vivo independente — uma unidade — que faz parte do todo. Um elemento vivo contido dentro do ser vivo maior”.
Assim como a fisiologia celular é a base da fisiologia humana; a patologia celular é a base da patologia humana. “Toda doença depende da alteração de um número maior ou menor de unidades celulares no corpo vivo, toda perturbação patológica, todo efeito terapêutico, só encontra sua explicação final quando é possível designar os elementos celulares vivos específicos envolvidos”, explica o oncologista.
Apesar de todas as conquistas, ao longo dos últimos quatro séculos, há ainda muito a ser descoberto sobre o intrincado universo celular. “Dividimos o corpo em órgãos e sistemas — órgãos que desempenham funções distintas (rins, corações, fígados) e sistemas de células (células imunes, neurônios) que possibilitam essas funções. Identificamos os sinais que trafegam entre eles — alguns de curto alcance e outros de longo alcance”, escreve o médico. “Mas ainda há lacunas em nosso entendimento da interconexão de células.”
Por que o fígado e o baço, vizinhos anatômicos, são do mesmo tamanho e irrigados quase pelo mesmo fluxo sanguíneo, mas apenas o fígado está entre os locais mais frequentes de metástase? Por que portadores de algumas doenças neurodegenerativas, como Parkinson, têm menos risco de desenvolver câncer? Por que pacientes que descrevem sua depressão como “um tédio existencial” não se beneficiam da estimulação cerebral profunda como aqueles que se veem na doença como que “caindo em um buraco vertical”?
Pois é, nem toda melodia, ritmo, harmonia e letra da canção das células foram decifrados. Como conclui Mukherjee: “Então o desafio é este”. Continua a ser este.
Serviço:
A canção da célula – As descobertas da medicina e o novo humano
Siddhartha Mukherjee
Tradução: Berilo Vargas
Companhia das Letras
528 páginas
Impresso: R$ 104,90