Praticar corrida de rua virou uma paixão nacional. Cerca de 14 milhões de brasileiros descobriram o prazer de desbravar as cidades a partir de novos ângulos, no ritmo de suas passadas. Nos finais de semana, as corridas patrocinadas por marcas esportivas tornam-se cada vez mais frequentes. É uma festa.
De acordo com a Associação Brasileira de Organizadores de Corridas de Rua e Esportes Outdoor (Abraceo), foram pouco mais de 2,8 mil provas no País em 2024, que movimentaram quase R$ 1 bilhão em inscrições e geraram um impacto de R$ 2,5 bilhões junto ao turismo esportivo.
Mas há um "obstáculo" no treinamento desses atletas amadores em São Paulo. Nos últimos meses, os grandes grupos de corredores são cada vez mais raros no Parque Ibirapuera, um dos locais preferidos da capital paulista para a prática do esporte. O sumiço se deve a uma disputa entre a empresa Urbia, responsável pela gestão, operação e manutenção do parque, e as assessorias de corrida.
Em 2020, a Urbia assumiu a administração do parque pelos 35 anos seguintes. Entre as mudanças adotadas desde então, a concessionária anunciou a cobrança de uma taxa das cerca de 90 assessorias pelo uso do espaço. Mensais, as tarifas variam conforme o número de alunos de cada assessoria. O menor valor é de R$ 10 mensais por aluno, para as empresas com cinco matrículas.
Para esquentar ainda mais a briga, recentemente, a Urbia lançou sua própria assessoria de corrida, a Corre no Ibira. Com planos a partir de R$ 170 e chegando a R$ 279, os preços estão abaixo dos praticados no mercado e o serviço ainda oferece suporte físico dentro do parque — com chuveiros, armários e hidratação. Os clientes premium contam até com sessões de recuperação muscular.
As primeiras cem vagas foram preenchidas em poucos dias. Até o fim de 2025, esse número deve chegar a 300. “O Corre no Ibira é uma opção adicional para os corredores que desejam uma experiência mais completa, com estrutura profissional, benefícios exclusivos e suporte diferenciado”, diz Samuel Lloyd, diretor comercial da Urbia, em entrevista ao NeoFeed.
Para Douglas de Melo, diretor-presidente da Associação dos Treinadores de Corrida de São Paulo (ATC–SP), que representa os profissionais, o timing do Corre no Ibira é, no mínimo, “interessante”.
“Depois de todas as informações que eles receberam das assessorias e treinadores nos últimos meses, eles foram lá e montaram a própria, com valor de mercado abaixo do que é apontado na própria pesquisa que eles próprios fizeram”, afirma ao NeoFeed.
Ao que Lloyd responde: “Esse projeto não substitui, nem inviabiliza a prática livre de corrida ou a presença de outras empresas de assessoria esportiva ou de corrida no Parque. Pelo contrário, reforça o compromisso da Urbia em oferecer serviços de qualidade e cuidar do espaço público para que todos possam usufruir com segurança e conforto”.
No conflito em torno da cobrança das taxas, a ATC–SP insiste na ilegalidade da medida. Segundo Melo, o contrato apresentado pela Urbia é repleto de cláusulas de interpretação subjetiva — e que só representam vantagens à própria concessionária. Além disso, algumas das obrigações são impossíveis de serem cumpridas, o que, pelo próprio texto, poderia levar à não renovação ou à rescisão por parte da concessionária.
Uma das cláusulas, por exemplo, determina que as assessorias têm total responsabilidade por quaisquer acidentes ou ocorrências com seus alunos durante a prática esportiva dentro do parque, incluindo socorro e atendimento médico imediato. Outra disposição prevê o acesso da Urbia às demonstrações financeiras e contábeis das empresas esportivas.
“Nunca fomos contra uma forma de contribuição”, argumenta Melo. “O problema está no modelo imposto, sem construção conjunta, com contratos desequilibrados e ameaças veladas à continuidade da atividade profissional.”
Exemplo para outros parques
O caso foi parar na justiça. A associação entrou com pedido no Ministério Público de São Paulo para investigar a viabilidade dos pedidos e cobrança da Urbia. De seu lado, a própria concessionária entrou com um processo contra uma das assessorias, a The Run, que conta com cerca de 500 alunos.
Em julho, a juíza Lais Helena, da 4ª Vara Cível da capital, concedeu liminar de primeira instância à Urbia, alegando que a concessionária tem o direito de explorar o parque e fazer cobranças a empresas de fora que fazem uso comercial do parque.
Ricardo Gigioli, sócio e diretor técnico da The Run, a empresa afetada pelo processo, afirmou que busca por uma regulamentação "construída com participação das assessorias, garantindo condições justas, igualdade de tratamento e respeito ao caráter público do parque".
"Nós fomos impedidos, por decisão judicial, de manter o ponto de apoio dentro do Ibirapuera, pela falta de assinatura da adesão e estamos esperando do Ministério Público", diz o empresário, ao NeoFeed.
Com a cobrança da taxa, a Urbia prevê arrecadar cerca de R$ 500 mil por ano — dinheiro que será usado, segundo a empresa, para melhorias do parque. Até o momento, a concessionária afirma ter investido cerca de R$ 226 milhões no Ibirapuera. Uma parte foi destinada à criação da Corre no Ibira.
Segundo Melo, se o contrato da Urbia com as assessorias não for transparente e igualitário, outros parques e espaços públicos de todo o estado de São Paulo correm o risco de enfrentar o mesmo imbróglio.
“A Secretaria do Verde já nos disse que esse será o modelo a ser seguido, então ele precisa estar correto”, diz o representante da ATC–SP. “Nós sempre batemos na tecla de igualdade. Se é para cobrar, que ninguém fique de fora ou que haja organização, para que não haja surpresas no futuro."