"Dentro de pouco tempo - talvez bem pouco - o que se chamou em fevereiro de 1922, em São Paulo, a Semana de Arte Moderna, marcará uma data memorável no desenvolvimento literário e artístico do Brasil", escreveu Paulo Prado em dezembro de 1923.
O empresário estava em Paris na mesma época em que acontecia o Salão de Outono e viu a escultura Mater Dolorosa, de Victor Brecheret, ganhar o prêmio da exposição. Naquele momento, ele soube que o investimento feito para a organização da Semana de 1922 tinha dado certo. Se não fosse a influência e a perspicácia de Prado, a Semana de Arte Moderna não teria ganhado a proporção que ganhou.
Nascido em 1869, Paulo da Silva Prado era o primogênito do empresário e cafeicultor Antônio da Silva Prado, o primeiro prefeito da capital paulista. Formado em Direito pela Academia do Largo de São Francisco, aos 21 anos, viajou para a Europa - onde passou uma temporada de alguns anos.
Conheceu museus, teatros e livrarias aos quais nunca teria acesso no Brasil e teve contato com o escritor português Eça de Queiroz e intelectuais brasileiros que estavam por lá como Joaquim Nabuco e o Barão do Rio Branco.
Ao perceber que já tinha passado tempo demais longe de casa, sua mãe, Maria Catarina da Costa Pinto e Silva, pediu que regressasse para cuidar dos negócios da família. Entre 1911 e 1924, ocupou cargos de diretor-gerente e diretor-presidente na exportadora de café Casa Prado, Chaves & Cia, maior empresa brasileira do ramo na época.
A dedicação ao negócio fez com que Paulo Prado se tornasse um exímio conhecedor de café. No entanto, a vida apenas de empresário parecia insuficiente. Em 1919, junto com o cônsul da França, poeta e político Freitas Vale, organizou uma exposição com esculturas e pinturas impressionistas de Antoine Bourdelle, Auguste Rodin e Jean- Paul Laurens no hall do Theatro Municipal.
A cidade do tédio se movimenta ao barulho modernista
Embora a história de quem teria tido a ideia da realização da Semana de Arte Moderna seja ainda um pouco incerta, a versão mais factível é que o estopim tenha partido do artista carioca Emiliano Di Cavalcanti, que estava morando em São Paulo e, para garantir a subsistência, publicava ilustrações em jornais.
A fim de tentar promover o seu trabalho, Di Cavalcanti queria organizar um evento que reunisse novos talentos da literatura e da pintura, assim poderia expor seus quadros. O local pensado pelo pintor para abrigar a exposição e a conferência literária seria a livraria O livro, de Jacinto Silva, onde ele já havia exposto uma vez e com frequência aconteciam lançamentos de livros e leituras públicas.
Para organizar algo do tipo, mesmo que de pequeno porte, era preciso dinheiro. À procura de um financiador, Di Cavalcanti teria comentado a ideia com o diplomata e escritor Graça Aranha, que resolveu levá-la ao empresário Paulo Prado.
"Ele era um homem muito rico, viajado, culto e que morria de tédio de viver em São Paulo, que naquela época era uma cidade muito provinciana sem nenhuma atividade cultural", conta ao NeoFeed o pesquisador, professor e ex-secretário municipal de Cultura Carlos Augusto Calil, organizador das respectivas edições de 2004 e 1997 de Paulística etc (1923) e Retratos do Brasil (1928), de Paulo Prado, cujas teorias passam por uma revisão histórica atualmente.
"Todos os anos ele viajava para Paris, Londres, via o que estava acontecendo naquelas cidades no começo dos século 20 e voltava para cá, onde ficava bastante aborrecido." As únicas distrações do empresário eram almoços dominicais de comida brasileira oferecidos aos amigos, sobretudo jovens intelectuais como os escritores Oswald e Mário de Andrade.
Em um desses almoços, Prado teria discutido a ideia do evento de Di Cavalcanti com a dupla de escritores paulistas, que se animaram muito. Para arrematar, a esposa de Prado, Marinette, sugeriu que o acontecimento fosse como a Semana de Arte de Deauville, na França, que reunia exposições de arte, música e literatura.
A ideia cresceu. "Virou um movimento de jovens que queriam lançar uma nova sensibilidade moderna, contemporânea para a arte brasileira, sobretudo paulista", explica Calil. Mas para fazer algo de presença e que chamasse a atenção, os participantes não poderiam ser apenas artistas que moravam em São Paulo e os fundos de uma livraria não pareciam um local atrativo o bastante.
Que tal, então, convidar artistas que moravam no Rio de Janeiro e alugar o Theatro Municipal, cuja construção tinha sido iniciada pelo prefeito Antônio Prado, pai de Paulo Prado, e inaugurado apenas 11 anos antes da Semana? Com o engajamento do empresário, isso foi possível.
Graça Aranha, Mário e Oswald de Andrade foram ao Rio de Janeiro fazer contato com os artistas, músicos e escritores que eles acreditavam que tinham uma "pegada" moderna. E conseguiram trazer o poeta pernambucano Manuel Bandeira, que morava na capital fluminense, e o maestro Heitor Villa Lobos, a maior atração moderna do evento.
Nas artes plásticas, confirmaram a presença da pintura radical, para a época, de Anita Malfatti, e dos artistas: o pernambucano Vicente do Rego Monteiro, o carioca Di Cavalcanti, o suíço John Graz, que chegara ao Brasil havia dois anos, e do escultor Victor Brecheret (veja abaixo onde ver os trabalhos de alguns desses artistas).
A confirmação da participação desses artistas vindos do Rio de Janeiro, Recife, Minas Gerais e, claro, São Paulo, configurava um movimento nacional dentro de suas proporções e para a época.
Enquanto o trio cuidava da programação, Di Cavalcanti trabalhou no convite e no catálogo do evento; e Paulo Prado, na captação de verba para a sua realização, que ele poderia até financiar sozinho, mas resolveu envolver seus amigos que frequentavam o Automóvel Clube.
"Ele queria cutucar os colegas", afirma Calil. Prado fez questão de passar uma subscrição no Clube para incentivar os fazendeiros endinheirados oriundos de famílias tradicionais a contribuir também. "Como era ele quem pedia e o dinheiro era pouco, essas pessoas eram constrangidas em colaborar. E com isso ele envolvia essa elite em um movimento de modernização da cidade. Era o lado provocador dele", conclui.
Prado conseguiu atrair o investimento de muitos colegas, mas nem todos estavam certos de que aquele seria um bom investimento. Houve quem ficasse com o pé atrás, achando que ele estava colocando a sua reputação em prol de uma ideia de jovens que poderia resultar em nada.
"Ele estava muito empenhado para que alguma coisa acontecesse de fato em São Paulo, que se virasse o jogo" afirma Calil. "E avalizava o movimento com a credibilidade que tinha no meio conservador, na imprensa, na alta elite. E era cobrado por isso."
Com a sua certeza de que aqueles jovens poderiam mudar algo na cena cultural da cidade, Prado levantou a quantia de 847 mil réis (cerca de R$ 20 mil atuais) para locar o Theatro Municipal, de 13 a 17 de fevereiro, para a realização da Semana de Arte Moderna.
O evento fez tanto barulho que ecoa há 100 anos na produção artística nacional e despertou a necessidade de profundas mudanças nos artistas a partir daquele momento. Um grito de liberdade de forma e conteúdo. Contra as regras rígidas da Escola de Belas Artes e as métricas das rimas parnasianas. A favor de uma estética autêntica e de temas que se conectassem com a realidade e a origem brasileiras que abriu as portas e projetou uma geração de criadores.
A confirmação de que a intuição de Prado estava certa veio em 1923, quando ele viu o trabalho de Brecheret ser premiado no salão parisiense. Sua importância para o movimento modernista foi reconhecida por Oswald de Andrade, que pediu para Paulo Prado escrever a introdução do livro "Paulo Brasil", e por Mário de Andrade, que dedica a ele "Macunaíma", uma das principais obras da literatura moderna brasileira.
Paulo Prado voltou a "cutucar" outra vez a elite cafeeira paulista quando tomou conhecimento, em 1926, de uma carta de Padre José de Anchieta datada de 15 de novembro de 1579 e posta à venda por 200 libras em Londres.
Compreendendo que aquele era um documento importante para a história do país, converteu o valor da epístola em 30 sacas de café. Desse modo, sugeriu aos cafeicultores que contribuíssem com a doação do produto para a aquisição do documento – doado depois para o Museu Paulista, conhecido como Museu do Ipiranga.
Embora não se apresentasse como colecionador, comprava obras com o intuito de ajudar os artistas. Durante a Semana de Arte Moderna, adquiriu A Onda, de Anita Malfatti. Nos anos 1930, depois de visitar uma exposição do pintor Cândido Portinari ainda no início de sua carreira, comprou uma tela. Como agradecimento pela única venda feita na ocasião, o artista lhe enviou de presente mais duas. Paulo Prado faleceu em 3 de outubro de 1943.
Depois da Semana de Arte Moderna, outra investida da alta sociedade paulista para a movimentação da cena cultural paulista seria feita somente quase 30 anos mais tarde. O casal de industriais Yolanda Penteado e Ciccillo Matarazzo criou, em 1951, a Bienal de São Paulo, realizando a primeira exposição de arte moderna de grande porte fora dos centros culturais europeus e norte-americanos.
Onde ver as obras da Semana de Arte Moderna 100 anos depois?
Algumas das obras que participaram do icônico evento no Theatro Municipal fazem parte do acervo de instituições de arte de São Paulo. Saiba onde encontrar pinturas e esculturas que foram expostas na Semana de 22
. A Estudante, 1915, de Anita Malfatti, faz parte do acervo do Masp.
. Soror Dolorosa, 1919, de Victor Brecheret, está na coleção da Casa Guilherme de Almeida, exposto permanentemente.
. A Pinacoteca do Estado de São Paulo guarda as pinturas Amigos (Boêmios), 1921, de Di Cavalcanti, atualmente exposta na mostra Modernismo. Destaques do acervo; e Paisagem de Espanha (Puente de Ronda), 1920, de John Graz.
. O Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), que preserva a coleção de obras de arte de Mário de Andrade, têm em seu acervo obras que fizeram parte da Semana: O Japonês, 1915, e O Homem Amarelo, 1915/1916, ambos de Anita Malfatti, e Composição (Lendo o jornal), 1922, Yan de Almeida Prado.