"Cachorros" eram os informantes dos serviços secretos militares, os militantes de esquerda que, ao serem presos, mudavam de lado e passavam a servir à ditadura. Cachorros é o título do novo livro do jornalista Marcelo Godoy.

Lançado pela editora Alameda, a obra conta a história do “maior espião” do regime — o agente Vinícius, codinome de Severino Deodoro de Mello, militante histórico do Partido Comunista Brasileiro (PCB), cooptado pelos órgãos de repressão.

Godoy revela a participação de Mello em dezenas de sequestros, mortes, prisões e desaparecimentos. Como o agente ajudou a neutralizar o PCB nos anos 1970. A partir de documentos e pesquisas em arquivos de cinco países, analisados ao longo de uma década, o jornalista esmiúça a transformação de um dirigente comunista em agente infiltrado dos militares.

Aos 17 anos, Mello participou como cabo do 29º Batalhão dos Caçadores, em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, da insurreição de 1935, para derrubar o então presidente Getúlio Vargas. Como muitos revoltosos, o jovem acabou preso pela ditadura do Estado Novo.

Na cadeia, em 1938, ele se filiou ao PCB. Quatro anos depois, aos ser solto, Mello se mudou para o Rio de Janeiro. Quando o partido teve seu registro cassado e caiu na clandestinidade, ele ficou responsável pela segurança de Luiz Carlos Prestes, a liderança comunista mais importante da América Latina.

Por uma década, Prestes só teve contato com dois dirigentes do PCB. Mello era um deles. Membro do comitê central, da executiva e do secretariado do partido, ele teve várias funções. Entre elas, manter contato com a KGB, o serviço secreto da União Soviética. Mello chegou inclusive a ficar encarregado de produzir documentos falsos para integrantes do PCB.

Em 1974, porém, tudo mudaria, com a prisão de Mello pelos militares. “Quando a tenente Beatriz Martins, a Neuza, pôs as mãos no peito de Severino Theodoro de Mello para se certificar de que o integrante do Comitê Central do PCB ainda estava vivo, essa policial militar, filha de fazendeiros de Cafelândia, no interior paulista, apenas expressava a estratégia cada vez mais implacável do regime dos generais”, conta Godoy.

O gesto aparentemente humanitário da agente Neuza “produziu uma lembrança indelével, retirando a policial da multidão de agentes para fazê-la personagem dessa história”. Quando os militares perceberam a importância de Mello dentro do PCB colocaram o dirigente comunista contra a parede: ou ele colaborava com o regime ou seria morto.

Mello poderia ter aceitado o acordo, para em liberdade, tentar avisar os  colegas de partido. Mas, ele não fez nada — "cachorros" porque informantes, como o agente Vinícius, tendiam à obediência.

Como espião dos militares, Mello foi peça fundamental na operação que neutralizou o PCB.  Ao todo, vinte dirigentes foram delatados por agente às forças de repressão. Entre eles, Álvaro Bandarra e Davi Capistrano, que morreu sob tortura.

Com 552 páginas, o livro custa R$ 149 (Crédito: Divulgação)

Até durante o exílio na na União Soviética com outros comunistas, Mello continuou a trabalhar para a ditadura — espionando e enviando informações para o Brasil. Mesmo de volta em casa, em 1979, com a anistia, o agente Vinícius se manteve fiel aos militares e assim permaneceu até os anos 1990.

Godoy mostra em detalhes como Mello se manteve como personagem da mais longa operação de espionagem política da história do Brasil, mesmo depois do fim do regime militar, em uma relação cooperação que se estendeu pelo mandato de quatro presidentes civis.

No livro, o autor conta a história do agente duplo em paralelo a do Doutor Pirilo, o capitão da Aeronáutica Antônio Pinto, um dos dois oficiais que controlaram o informante por 20 anos e de quem este se tornou amigo.

Quando foi preso, porém, Mello não titubeou em aceitar ser espião remunerado do Exército para trair os colegas de PCB, que confiavam nele como integrante efetivo das três principais instâncias da direção nacional do então chamado “partidão”: o Comitê Central, a Comissão Política Nacional e o Secretariado Nacional.

Muitos anos depois, admitiu a dois dos antigos amigos que fora preso em 1974. Também revelou que concordou em colaborar com os militares porque ameaçaram matar seu filho e sua mulher, mas negou que tivesse continuado como espião do regime durante o exílio em Moscou ou ao voltar ao Brasil, em 1979. Mentiu.

O antigo companheiro da Executiva do PCB Régis Frati, um dos últimos a acreditar na traição de Mello, comentou: “Ele teve essa chance: ‘Olha, fui preso, não aguentei, os caras iam matar a mim, meu filho, minha mulher, eu abri isso e isso, me condenem’. Eu garanto que ele seria anistiado, pois as pessoas confiavam em uma confissão honesta, como o Armênio, o Almir e o Hércules. Teve a anistia e ele não fez isso. O Mello vendeu a alma pro diabo”.

Ninguém nunca desconfiou dele. Ao perceber que crescia a desconfiança de haver um infiltrado no partido, Mello passou a fazer intrigas e a levantar suspeitas contra alguns colegas pra desviar o foco.

Godoy escreve: “A maledicência tinha um alvo certo: Givaldo Siqueira, o camarada Rocha. Mais tarde, Pacato (apelido de Mello) ia se encarregar de aprofundar as suspeitas contra o companheiro, cuja família era vigiada pelo Cenimar (Marinha)”.

O espião morreu em 2022, aos 105 anos, esquecido em seu apartamento no bairro carioca de Copacabana. Era o último sobrevivente da Revolta Comunista de 1935..

Autor do premiado A Casa da Vovó: uma biografia do DOI-CODI, de 2014, com Cachorros, o jornalista desvenda mais uma vez os meandros de um dos períodos mais sombrios da história do Brasil.