Tadáskía aparece, na videochamada, em uma sala branca. Nenhuma imagem de decoração, estante de livros ou cor sinalizam vestígios das preferências ou da biografia da artista negra e trans de 29 anos. Contudo, o cenário aparentemente neutro diz mais sobre a jovem carioca do subúrbio de Santíssimo, zona oeste do Rio de Janeiro, do que todo este texto.
"Na minha casa não tem nada pendurado na parede. É to show, to hide – eu faço, mostro e escondo", explica a artista ao NeoFeed. "O importante é que o primeiro movimento seja feito com vontade." No momento, toda a vontade de Tadáskía está em exposição.
Ao lado da artista Rebecca Sharp, Tadáskía participa da sétima edição do programa Caixa de Pandora, promovido pela Kura e a coleção Ivani e Jorge Yunes, uma das mais importantes do país, que reúne obras de arte desde o século II A.C até os anos 1970.
A proposta do projeto é trazer arte contemporânea para dentro do acervo histórico e artístico que ocupa uma mansão no Jardim Europa, em São Paulo, e está em cartaz até 16 de dezembro. A obra "Abdução", desenvolvido por Tadáskía, propõe ainda uma reflexão profunda da coleção.
"Seus trabalhos surgem da relação corpórea e social com a casa: na percepção das múltiplas temporalidades que envolvem a presença negra e a presença trans – seja nas representações histórias, na produção de arte ou nos fluxos dos corpos", escreve Germano Dushá, curador da mostra.
Além de desenhos, a artista apresenta uma série de vídeos espalhados estrategicamente pela casa. Nas telas, Tadáskía aparece se comunicando por telepatia e realizando uma série de ações com a amiga Sabine Passareli. As duas personagens constroem um arranjo de palha, desenham uma nas costas da outra e dançam até se desmaterializarem em partículas brilhantes que ascendem aos céus. Tudo no vídeo é envolto em um mistério e alude à transformação do estado das coisas.
Agenda cheia
Só neste ano, além de realizar sua primeira exposição individual na galeria Sé, em São Paulo, em abril, ela integrou outras oito coletivas em instituições nacionais e internacionais. Atualmente, há trabalhos seus expostos na 37ª edição do Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte de São Paulo, e nas mostras "Eros Rising: Visions of The Erotic in Latin American Art", no Institute for Studies on Latin American Art (ISLAA), em Nova York (até 30 de setembro), e na "Jaimes", na Triangle Asterídes, em Marselha (até 16 de outubro).
Participou ainda da "The Silence of Tired Tongues", na Framer Framed, em Amsterdam; na "Are Artworks Contemporary", na Madragoa, em Lisboa. E no Brasil em "Setas e turmalinas", na Casa de Cultura do Parque, e na "Semana sim, Semana não: paisagens, corpos e cotidianos entre um século", na Casa Zalszupin, ambas em São Paulo.
"Eu estou muito feliz com esse alcance que meu trabalho está tendo. Mas quero que esse alcance seja coletivo. Como uma oração, que ganha força quando mais de uma pessoa faz junto", diz.
Uma herança do tempo em que frequentou a igreja evangélica pentecostal na adolescência. Hoje a artista diz não ter religião, mas alguns ensinamentos, como o poder do coletivo, permanecem em suas ações.
Tadáskía nunca faz um único desenho, cria sempre em duplas, trios ou conjuntos. E faz parte do processo de criação da artista convidar familiares e amigos para participarem de seus trabalhos. Essa é uma forma de compartilhar o que vem conquistando com as pessoas de seus convívio.
Estudar é preciso
Se hoje Tadáskía está ampliando suas fronteiras, no começo de sua história era difícil sair até de Santíssimo. A primeira vez que visitou o centro do Rio de Janeiro foi por intermédio de uma atividade da escola quando tinha pouco mais de 10 anos. A proposta da professora de artes Márcia Costa era levar os alunos para conhecer alguns pontos turísticos da cidade.
"Foi o primeiro contato que tive fora da zona oeste. Durante o passeio fazíamos desenhos de observação de objetos que estavam fora do nosso imaginário e convívio. Muitas pessoas conheciam o Cristo e o Pão de Açúcar, menos a gente. A Márcia nos proporcionou esse acesso e foi importante", conta.
A educação sempre foi, dentro de sua casa, a chave para que o contato com novos mundos se ampliasse. Assim que concluiu o ensino fundamental, Tadáskía buscou o ensino técnico para conseguir um trabalho melhor do que estender faixas de propagandas nos semáforos ou ajudar o pai em uma loja de artigos para festas, em que trabalhava.
Estudou eletrotécnica, na Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec), e ia bem nas disciplinas práticas e teóricas. Mas, na hora de encontrar um estágio, sua pessoalidade era critério de eliminação. "Eu passava nas provas, mas as pessoas perguntavam: você vai aguentar ser zoada? Eu era uma figura muito diferente daqueles homenzões", lembra.
Ao prestar vestibular, foi pragmática: escolheu Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro porque a nota de corte era a mais baixa. "Eu teria uma oportunidade só e precisava passar", ressalta ela que entrou pela política de cotas. Ao concluir a licenciatura, foi além e fez mestrado em educação pela mesma universidade.
Em paralelo ao trabalho como educadora em diversas instituições culturais, como Casa França Brasil e Museu de Arte do Rio (MAR), realizava sua produção artística com o que tinha em mãos. Linha, casca de ovo, lápis de olho, esmalte, papéis com cópias de textos acadêmicos. Tudo servia de material para criar.
Um empurrãozinho
A galerista e artista Maria Monteiro, da galeria Sé, em São Paulo, acreditava que seu time de artistas estava completo. Mas assim que a curadora Clarissa Diniz apresentou o portfólio de Tadáskía, sentiu que precisava se encontrar com ela. Marcou um encontro e pegou o primeiro avião com destino ao Rio de Janeiro. Tadáskía chegou com um pote de margarina em que guardava um trabalho feito de cascas de ovos costuradas com linhas douradas.
"Ela é a pura matéria-prima da imaginação", diz Monteiro, que em pouco tempo de conversa propôs à artista ser representada pela Sé. "A liberdade expressiva da Tadáskía me deixou arrebatada."
Desde que começou a representá-la, Monteiro afirma que a procura pelos trabalhos da artista tem sido constante. Quem visitar o estande da Sé, na feira ArtRio, que acontece neste fim de semana na capital fluminense, também vai encontrar obras da artista.
Em 2021, seis trabalhos de Tadáskía entraram para coleção do MAR, entre eles, quatro conjuntos de desenhos que fez durante a quarentena. A obra é prova de que tudo diante dela é um universo de possibilidades. A artista tingiu os papéis de cópias de textos acadêmicos lidos na universidade e usou o verso para desenhar.
A noite virou dia
Além dessas ações básicas de mostrar a artista em feiras, apresentar para outros curadores e agendar uma exposição na galeria, Monteiro acreditava que Tadáskía precisava viajar à Europa antes de sua primeira individual. Articulou com o programa Homesession, de Barcelona, uma residência artística de dois meses na cidade catalã, entre janeiro e fevereiro deste ano.
Esta foi a primeira vez que Tadáskía saiu do país. "Eu cruzei o Atlântico e via a noite virando dia, como algo que se transaciona e se transforma numa coisa para outra", lembra a artista, sobre quanto a imagem a estimulou criativamente.
Em Barcelona, Tadáskía recobriu as paredes da galeria da Homesession com desenhos que lembravam flores, mas também pássaros, apresentando uma característica de seu trabalho: o apreço pelo que se transforma diante dos olhos. A artista explora o estado "entre" as possibilidades do que se pode ser.
Um olhar desatento pode dizer que seus desenhos são abstratos, mas basta um pouco mais de atenção para que as linhas e massas de cores comecem a sugerir o que desejam ser. "O desenho também deseja", diz. Suas formas trazem referências dos adinkras – conjunto de símbolos dos povos acã, da África Ocidental, que representam ideias expressas em provérbios.
"Eu não sou uma artista abstrata", afirma. "Trabalho no entremeio da abstração e da representação. Quando você olha o meu desenho, vê uma forma que faz você imaginar algo. É o que chamo de 'this-that', isso e aquilo. Tem sempre algo se mostrando e se escondendo."