A filha entra no quarto e encontra o pai dormindo. Ela dispara 13 vezes contra ele. Um caso evidente de assassinato, certo? Não. O homem teria morrido em consequência dos tiros se ele… já não estivesse morto. Durante a necropsia, o médico-legista estranha os ferimentos.

Ao analisar o cérebro do cadáver, descobre que a atividade cerebral cessara três horas antes da mulher alvejar o pai. Ou seja, ele foi a óbito por causas naturais. E a filha saiu ilesa, já que ali não houve nenhum crime — nem sequer tentativa de homicídio.

O responsável pela necrópsia era o belga Philippe Boxho. E o caso da “filha que matou o pai morto” é uma das 18 histórias que ele conta no livro Os mortos também falam: Os casos extraordinários de um médico-legista. Best-seller na França, onde vendeu 1 milhão de exemplares apenas no primeiro ano de lançamento, a obra chega ao Brasil pela Editora Objetiva.

Diretor do Instituto de Medicina Legal e professor da Universidade de Liège, Boxho tem 30 anos de profissão, o que lhe permite assegurar: os cadáveres não são apenas corpos — mas testemunhos silenciados à espera de serem decifrados.

Com uma narrativa ágil e fascinante, ele relembra histórias de cadáveres desaparecidos, assassinatos disfarçados e suicídios inimagináveis. O médico lembra ao leitor que a morte nem sempre é o que parece.

“As histórias reunidas neste livro são todas verdadeiras, nada é inventado. Aliás, nem sequer seria necessário, já que, quando se trata de morrer, de matar, de se suicidar ou de fazer desaparecer um corpo, a realidade é suficiente, desde que se dê asas à imaginação”, escreve o autor.

Os mortos também falam combina autobiografia, ciência forense e true crime. O médico conta tão bem suas histórias que elas se tornam leves e, às vezes, até divertidas.

“A medicina legal não é uma profissão triste, como você vai perceber ao ler esses relatos, todos vividos por mim. O respeito que devemos aos mortos é o mesmo que devemos aos vivos, e sempre penso que é em nome desse respeito que eu manipulo e autopsio cadáveres em busca da causa da morte. Portanto, não fique surpreso com o fato de eu narrar essas histórias em tom brincalhão”, escreve Boxho. “Nós nos divertimos com a morte, e até com suas circunstâncias, mas nunca zombamos do morto em si.”

Certa vez, chegou ao médico o cadáver de um homem com 14 perfurações a bala. A suspeita, claro, era de assassinato. Uma análise mais detalhada dos ferimentos, o trajeto dos projéteis pelo corpo levou Boxho à certeza de que a vítima morrera por suicídio. Sim, ele atentou contra si mesmo 13 vezes e errou todas. Apenas na décima-quarta, ele conseguiu atingir um órgão vital.

Entre os casos selecionados, não poderia faltar a do morto que “ressuscita” no próprio velório.

Com 174 páginas, o livro custa R$ 59,90 (Foto: Editora Objetiva)

“Nós nos divertimos com a morte, e até com suas circunstâncias, mas nunca zombamos do morto em si", escreve Boxho (Foto: Editora Objetiva)

Lucette e Jeanine eram melhores amigas de uma vida inteira. Lucette faleceu aos 85 anos, serenamente. “Quando Jeannine está diante do caixão, comovida, subitamente, Lucette se levanta e diz: ‘Oh, Jeannine, que simpático você ter vindo me ver!', conta Boxho.

Assustada, Jeannine cai ao chão e morre imediatamente, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Lucette escapou por pouco de acordar no caixão, sepultada, e ainda viveu um bom tempo depois de seu próprio velório.

Ela fora declarada morta, quando, na realidade, havia sofrido uma longa crise de catalepsia, quando os músculos enrijecem e a pessoa não consegue se mover. Ninguém percebeu — nem o médico dela nem os funcionários da agência funerária.

Boxho conta ainda como descobriu (mais de uma vez) assassinatos disfarçados de acidentes, como quedas de escadas, afogamentos ou acidentes de carro. O médico descreve como as marcas no corpo e o padrão de ferimentos denunciaram a simulação.

Seu trabalho clínico e acadêmico lhe rendeu reconhecimento da Academia Real Belga de Medicina e um lugar no Conselho Nacional da Ordem dos Médicos. Mas o sucesso de seu livro levou o legista aos holofotes. Por causa de Os mortos também falam, ele se tornou quase uma celebridade, habitué dos programas de televisão.

Aliás, Boxho dedica uma atenção aos exageros dos seriados e filmes de investigação criminal. "Meu objetivo é divulgar minha profissão, uma profissão de bastidores, muito mal representada nas séries de TV e nos filmes de maneira geral.

"O médico-legista costuma ser representado como um desajustado: parece impossível que um médico convencional possa preferir dar a palavra aos mortos a ouvir os vivos", diz o escritor. Além disso, na ficção, vestígios são encontrados em minutos e tudo se resolve rapidamente.

No mundo real, revela Boxho, as autópsias podem levar meses, impressões digitais frequentemente se mostram inúteis e não raras as vezes os casos são solucionados.

Se os mortos podem falar, é preciso que alguma comunicação se estabeleça com o mundo dos vivos.