SAN SEBASTIÁN – Em “Atiraram no Pianista”, um jornalista de Nova York, amante da música brasileira, é obcecado pelo desaparecimento de Francisco Tenório Jr. (1941-1976), morto às vésperas do golpe que levou à ditadura argentina. Ninguém teve mais notícia do pianista carioca desde que ele deixou o hotel Normandie, em Buenos Aires – “para comer um sanduíche e comprar remédio”, conforme bilhete deixado à namorada.
Mas quem realmente não conseguiu tirar a história de Tenório da cabeça foi o espanhol Fernando Trueba, diretor do filme documental, feito em animação. Sua fascinação nasceu em 2004, quando o cineasta ouviu um disco da década de 60 e ficou impressionado com o trabalho no piano, querendo saber mais sobre aquele artista que pertenceu à era de ouro da Bossa Nova.
“O jornalista do filme é o meu alter ego. Por quase 20 anos, rastreei a vida e os últimos dias de Tenório”, contou Trueba, ao NeoFeed, durante a 71ª edição do Festival Internacional de Cinema de San Sebastián, o SSIFF, onde “Atiraram no Pianista” foi uma das atrações. Depois de passar também pelo Festival do Rio, o filme acaba de chegar aos cinemas do Brasil.
Trueba descobriu Tenório quando estava na Bahia rodando o documentário “El Milagro del Candeal”, em 2004. Nos intervalos da filmagem, o cineasta vasculhava lojas de livros e de discos. “Foi assim que comprei um álbum do grupo Os Cobras, no qual Tenório tocava. A partir daí, fiquei louco por sua música, querendo comprar todos os discos que contavam com a sua participação”, afirmou o diretor, vencedor de um Oscar de melhor filme estrangeiro por “Sedução” (1992).
“Saí desesperado atrás do único disco de Tenório, ‘Embalo’, de 1964. Como estava esgotado, acabei comprando um exemplar pelo eBay, de uma loja japonesa”, recordou Trueba, rindo.
“Ao pesquisar sobre Tenório, fiquei perplexo com o seu fim trágico. E me surpreendi ainda mais ao perceber que havia pouca informação sobre o músico e as circunstâncias de sua morte. Nem no Brasil, onde o pianista acabou esquecido”, completou o cineasta de 68 anos.
No segmento de audiovisual, tudo o que Trueba encontrou sobre o músico foi um curta-metragem, de 20 minutos, chamado “Balada para Tenório Júnior”, assinado por Rogério Lima, em 1983. De resto, o que havia era somente a documentação oficial sobre a sua morte, confirmada apenas dez anos depois de seu desaparecimento por um ex-integrante do serviço secreto argentino.
Tenório foi abordado nas ruas de Buenos Aires por agentes do serviço de informações da Argentina durante a madrugada. Pelos relatos, o pianista foi confundido com militante político em função da sua aparência (barbudo e com cabelo comprido) e por ser artista, o que não era visto com bons olhos na época.
Quando o pianista foi sequestrado, em 18 de março de 1976, poucos dias antes do golpe contra o governo de Isabelita Perón, o músico estava na Argentina para acompanhar seus amigos Vinícius de Moraes e Toquinho em apresentações. Tenório foi preso e levado à Escola Superior de Mecânica da Armada (Esma), onde foi torturado e, mais tarde, fuzilado, com um tiro na cabeça por Alfredo Astiz, mais conhecido como “o anjo da morte”.
“Colhi mais de 150 horas de entrevistas. Procurei quem conheceu Tenório ou teve alguma ligação com o seu desaparecimento”, disse Trueba, que fez incontáveis viagens para São Paulo, Rio e Buenos Aires em busca de respostas. “Fui perseguindo artistas por todos os lados, o que incluiu passagens por Nova York e Los Angeles atrás de músicos que conheceram Tenório."
Ele complementa: "Fui me envolvendo cada vez mais, por se tratar dessa geração de músicos maravilhosos. A Bossa Nova foi um momento mágico”.
A investigação sobre Tenório que o crítico musical (com voz de Jeff Goldblum, que atuou em "Jurassic Park" e "Independence Day") faz no filme foi conduzida por Trueba. O diretor contatou a viúva, os filhos e a amante do pianista, com quem ele viajou à Argentina. Foram ouvidos ainda Milton Nascimento, Gilberto Gil, Toquinho, Caetano Veloso e Chico Buarque, entre outros, que recordam as suas experiências com Tenório.
No caso de Vinícius de Moraes (1913-1980), o depoimento que o músico deu na época foi resgatado. Ele foi um dos que mais sofreu, sem entender o que havia acontecido com o amigo.
De certa forma, foram os entrevistados que pintaram o retrato de Tenório em “Atiraram no Pianista”, trazendo características de sua personalidade, suas paixões, seus dilemas etc. “Exceto por um trechinho registrado pela TV Cultura, não havia imagens de Tenório tocando. E eu fazia questão de mostrar Tenório vivo no filme. Tocando piano, gravando discos e na companhia de seus amigos e de sua família”, contou Trueba.
Isso explica a sua escolha pela animação, um gênero pouco explorado por produções documentais. Graças à parceria com o animador Javier Mariscal, com quem Trueba realizou “Chico e Rita” (2010), candidato ao Oscar de melhor animação, foi possível recriar nas telas as histórias contadas nos testemunhos.
“Não queria fazer um filme sobre um morto. E sim sobre um grande artista”, disse o diretor, acrescentando que “Atiraram no Pianista” é sua “carta de amor à música brasileira”. “Apesar de não ter conhecido Tenório, passei tanto tempo com ele na cabeça que posso considerá-lo meu amigo. Pena nunca termos tomado uma cerveja.”