Pássaros vestidos, fumando, trabalhando de coveiros ou assaltando. E pairando sobre eles pessoas nuas e voando. Vistos em fragmentos, esses personagens de um mural concebido no ano 2000 pelo desenhista, humorista, escritor, dramaturgo e tradutor Millôr Fernandes (1923-2012), para a antiga sede do Grupo Fleury, em São Paulo, são um tanto quanto desconcertantes.

Ainda mais quando se pensa que a obra estava no hall de entrada de uma empresa de saúde. “Mas o mural se tornou parte da identidade do próprio Fleury e, mesmo muita gente não entendendo o que o artista quis dizer, todo mundo valorizava”, contou ao NeoFeed Clóvis Porto, engenheiro e diretor de expansão e facilities do Grupo Fleury.

Foi por isso que ao mudar do bairro do Jabaquara para o novo prédio no Brooklin, em São Paulo - um edifício de 17 andares construído no modelo built to suit para dar conta da expansão do grupo nos próximos 20 anos -, Porto tinha como missão transpor de alguma forma a obra de Millôr de 6 m x 7 m, não só para preservar o patrimônio artístico da companhia, como também numa homenagem ao centenário do artista.

“Consultamos quatro restauradores porque a primeira ideia era levar a própria parede para o novo prédio”, diz o executivo. O resultado dessa “missão impossível” foi inaugurado na última semana: uma reinterpretação do mural em painéis fotográficos transposta para uma superfície de 2,6 m x 6,9 m.

Jeane Tsutsui, presidente do Grupo Fleury, disse que “trazer conosco a pretenciosa reprodução dessa obra que para nós sempre foi um símbolo da inspiração e obstinação pelo novo, pelo desconhecido e pela transformação” seria uma forma de “agradecer novamente ao Millôr Fernandes, em memória, por toda a sua generosa inteligência e poder de criação apaixonantes.”

Como não havia técnica possível para levar fisicamente a obra, uma vez que ela foi pintada diretamente na parede, a solução foi fotografá-la em tamanho natural, utilizando “câmeras fotográficas de alta resolução.” Cada registro passou por tratamento e digitalização do original, e então foi impresso em painéis. Na pós-produção, foi feito um trabalho para captar, o máximo possível, a incidência de luz e sombra do original.

Mas com superfícies de tamanho completamente diferentes nas duas edificações, o arquiteto Fernando Vidal, do escritório Perkins & Will, e o time de criação da Dea Design, que estavam à frente da reinterpretação, propuseram uma remontagem de painéis de tamanhos e profundidades diferentes.

A obra original dispunha de pé direito mais alto no hall de entrada da sede antiga

Dessa forma a obra, mesmo reduzida em dimensão, mantém o “movimento” da original. Uma concepção que dá um ar pixelado ao mural. “No processo criativo do novo painel foi muito importante respeitar e valorizar a obra de arte existente, que faz parte da história e legado do artista e da instituição”, diz Mariana Caram, sócia-fundadora da Dea Design.

“Trouxemos um novo olhar, através da fragmentação e reconstrução do painel, revelando novos aspectos e detalhes, buscamos marcar esse novo momento da história do Grupo Fleury.” A obra está instalada no segundo andar do edifício, na área de convivência.

Nesse processo, o Grupo Fleury precisou consultar a agência de Lúcia Ryff, que administra os direitos autorais de Millôr, para saber se seria possível essa reinterpretação. Veio de seu filho, Ivan Fernandes, a autorização para que a obra ganhasse estes novos contornos. “Ele concordou porque entendeu como homenagem ainda mais no centenário de nascimento de Millôr”, contou Porto.

Passarinhos pedestres

O mural original foi encomendado há 20 anos para marcar a então nova sede do Grupo, no Jabaquara. “A arquitetura do prédio, totalmente horizontal para que houvesse comunicação entre as equipes, foi muito inovadora para época e os sócios queriam ter uma obra de arte que traduzisse essa ousadia”, explica Eduardo Marques, diretor executivo de pessoas e suporte a operações do Grupo Fleury.

Ao que se sabe, o nome de Millôr Fernandes foi sugerido pelo médico e sócio José Gilberto  Henriques Vieira que admirava muito sua obra. E durante os últimos anos de preparo da atual mudança, Vieira passava por Porto nos corredores e perguntava. “E como vai ser com o Millôr?”

O artista não tinha tradição em murais corporativos. Tornou-se conhecido em especial por sua irreverência e cartuns publicados por décadas em veículos jornalísticos com a ironia, a sátira e crítica demolidora do poder, um “destemido do pensar”, como definiu o humorista Claudius Ceccon.

O convite na época surpreendeu o artista. Ainda mais pelo briefing que exigia que não houvesse referência a área de atuação do grupo. Ou como o próprio Millôr contou na “memória” da obra:

“Fleury sugeriu este mural, com a recomendação expressa de que a pintura não ficasse presa a concepções ligadas diretamente à sua atividade. Quase uma exigência de liberdade absoluta de criação. Como se houvesse essa possibilidade: obrigação de liberdade.”

Millôr criou a pintura em um pequeno cartão e os artistas plásticos Renato Brancatelli, Damara Bianconi e Susie Hervatin, sob sua supervisão, reproduziram a obra na parede da sede no Jabaquara, em agosto de 2000.

O relato sobre o processo de construção do mural ficava ao lado da obra na sede antiga e foi reproduzido no novo prédio para que “as novas gerações entendam seu significado”, diz Marques. Nele, Millôr, que batizou o mural de “Queda e Ascenção”, explica esse mundo em que passarinhos são pedestres e homens voam.

Diz ele que nada pode cair antes de ascender, mas “como referência a pássaros e seres humanos, a relação, quando chegamos ao mundo, já estava estabelecida. Os pássaros já tinham ascendido e viviam invejavelmente, na sua admirável condição volátil. E o ser humano só conseguia ascender à custa de aparelhos complicados e perigosos (...)."

A gravidade, aliás, como explica Millôr, “era o que mais obrigava o ser humano a enorme responsabilidades e forçados trabalhos.” Para ele, a ideia de inversão onde “os pássaros estão presos ao dia a dia do chão e os seres humanos aparecem libertos da gravidade, atrai logo pela estranheza e ultrapassasse a anedota.”

Millôr queria mesmo que os passantes diante de sua obra refletissem: "Que raios do céu ele quer dizer com isso? Pois é; o que aconteceu neste mundo que não previmos nem na mais louca ficção científica? Por que os pássaros descaíram tanto a ponto de estarem presos, amarrados, escravizados às funções pedestres que eram só dos seres humanos?”

E não só para aquela geração, mas também para as próximas. “Esperando que o respeitável público nos aplauda pela despretensão e nos critique pela pretensão, pedimos-lhe que volte e traga outras gerações. Mas isso só com o passar dos anos.” Missão dada, missão cumprida. Resta saber o que será feito do mural pelo novos locatários da antiga sede do Grupo que pertence a Transinc Fundo de Investimento.