Eu duvido que mesmo a Netflix esperasse que "It's a cake?“ ("Isso é um bolo?") fizesse um sucesso tão retumbante. Para quem não conhece e não se empanturrou com essa série de TV, é importante explicar: a premissa do programa envolve confeiteiros profissionais que tentam enganar juízes criando bolos que não parecem sobremesa, mas mercadorias do dia-a-dia, como bolsas, brinquedos ou fast food.
A maioria dos críticos vê o programa como apenas mais uma interação irracional da TV. Mas eu encaro o “ Isso é um bolo?” como uma série profundamente ligada a um momento cultural em que o engano – e aprender a reconhecê-lo – tornou-se parte da vida cotidiana.
“Isso é um bolo?” é uma receita segura para os espectadores testarem sua capacidade de detectar uma falsificação. Pode até parecer um exagero: bolo e conspiração dificilmente andam juntos.
No entanto, como historiadora da arte que pesquisa a decepção visual (ilusão ótica), notei que ao longo da história americana, momentos de ansiedade social em torno da verdade tendem a ser acompanhados por fenômenos pop tipo “engane os olhos”, desde as fraudes de Phineas Taylor Barnum (showman americano, empresário e político, famoso por promover pegadinhas e embustes), até as chamadas “trompe l’oeil”, técnicas com truques de perspectiva em pinturas.
Jogos de Adivinhação
Nas últimas décadas do século 19, enquanto o mundo da arte se enamorava com Van Gogh e Matisse, a classe média americana tornava-se obcecada com as pinturas “trompe l’oeil”: naturezas mortas hiper-realistas que apresentavam objetos cotidianos em tamanho real. Essas pinturas pareciam tão reais que as pessoas supostamente tentavam pegar violinos e notas de dólar pintados nas paredes e muros.
Mesmo as pessoas que já são naturalmente desconfiadas de tudo, corriam o risco de serem vítimas dessas pinturas hiper-realistas. Isso porque elas foram expostas sem molduras e em ambientes atípicos, como bares, vitrines e saguões de hotéis.
Nesses espaços públicos urbanos por excelência, o ato de ser enganado tornou-se uma experiência social coletiva, da mesma forma como acontece com o seriado “Isso é um bolo?”. Os espectadores se divertem com o fracasso dos juízes na tela e eles próprios – os juízes - também devem chegar a um veredicto coletivo após 20 segundos de debate.
Uma pintura particular de selos de 1890 lembra incrivelmente um trecho chamado “Cash or Cake” (“Dinheiro ou bolo”) que encerra cada episódio de “Isso é um bolo?”. A pintura de Jefferson Chalfant apresenta de forma despretensiosa dois selos de Lincoln lado a lado, um pintado, outro real. Abaixo deles, um recorte de notícias pintado convida os espectadores a decidir qual é o real, qual é o pintado.
No programa, o confeiteiro vencedor enfrenta essa situação específica quando oferecem a ele a oportunidade de ganhar um prêmio em dinheiro de bônus. Seu desafio era adivinhar qual dos dois recipientes transbordando de dinheiro era dinheiro real e qual era bolo. O objetivo desse exercício confuso é mostrar que mesmo os ilusionistas mais talentosos podem cair nas pegadinhas e fazer papel de bobos.
O humor autoconsciente também era fundamental no “trompe l'oeil”. Em vez de assinar seus nomes como os artistas costumam fazer, os pintores “trompe l'oeil” muitas vezes pintavam suas próprias fotografias ou cartas endereçadas ao seu estúdio em suas naturezas mortas como uma piada interna.
John Haberle, outro artista, teve uma de suas pinturas examinada por especialistas forenses e de arte que a observaram detalhadamente, com uma lente, e até tiraram parte da tinta. Essa inclinação investigativa explica a curiosa genealogia de “Isso é um bolo?”. O programa tem suas raízes em uma série de vídeos virais do Instagram, postados em 2020, que apresentavam bolos ilusionistas.
A maioria dos vídeos virais não se transforma em uma série de televisão, mas isso aconteceu com este vídeo porque o processo esotérico de criar a ilusão fascina, mesmo que os espectadores não tenham seu interesse focado em recheios de bolo.
Uma alegoria açucarada
“Trompe l'oeil” é uma forma de arte antiga, mas explodiu nos Estados Unidos no século 19 - e em nenhum outro lugar - porque o engano era um problema novo e particularmente americano.
Cidades e indústrias brotavam mais rápido do que nunca, e muitos americanos que se mudaram de áreas rurais enfrentavam pela primeira vez o anonimato no meio urbano. As cidades estavam repletas de oportunistas desonestos, de vigaristas a falsificadores – eram as Anna Delveys e Tinder Swindlers daquela época. A confiança era uma questão complicada.
Nessa atmosfera, o “trompe l’oeil” acabou exercendo uma função social: ofereceu aos americanos uma saída para testar seu discernimento de uma maneira prazerosa.
Portanto, não me surpreende que a gravitação em direção a um programa como “Isso é um bolo?” aconteça em um momento em que mais decepções ameaçadoras espreitam no cenário midiático.
Há até momentos em que o show se desvia em direções sugestivamente sombrias. Em um episódio, por exemplo, os padeiros tentam educar, coletivamente, o apresentador Mikey Day, ensinando-lhe o termo “tiltscape”: explicam que tem a ver com o equilíbrio e a distribuição de peso de produtos assados.
Somente após Mikey Day usar essa palavra durante a sua avaliação do trabalho dos concorrentes, foi revelado que o termo era uma farsa completa. Era uma alegoria açucarada para desinformação socialmente alimentada.
Em um momento em que muitas vezes não sabemos se o que encontramos em nossas telas é confiável, é bom aliviar essas ansiedades com um show em que a única consequência de ser enganado é cortar um sapato que acreditamos ser um bolo.
Maggie Cao é professora assistente de História da Arte (David G. Frey), Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill
Este artigo foi originalmente publicado em inglês no The Conversation.