PARIS “Eu não consigo imaginar a moda sem bordados nem bordados sem Lesage”, costumava dizer Karl Lagerfeld (1933-2019), diretor artístico da Chanel por 36 anos. O comentário do “kaiser” da alta-costura está longe de ser um exagero.

Fundada em 1924, pelo casal Albert e Marie-Louise Lesage e comprada pela Chanel em 2002, a maison segue como referência na arte artesanal do bordado e da tecelagem, colaborando até hoje com os grandes nomes da moda e da decoração de luxo.

“O destino da Lesage é extraordinário”, diz Bruno Pavlovsky, CEO da Chanel moda, em entrevista ao jornal francês Le Figaro. “Poucos teriam apostado que os bordados seriam uma atividade ainda tão forte no século 21.”

Para comemorar o centenário da marca, está em cartaz a exposição Lesage — 100 anos de Moda e Decoração. Até 5 de janeiro de 2025, a mostra acontece na Galeria do 19M, sede da Paraffection. Inaugurado em 2022, no norte de Paris, o lugar reúne todas as atividades da subsidiária da Chanel, criada para preservar e promover as chamadas “manufaturas de arte”.

Em um espaço com cerca de 25 mil metros quadrados, em um prédio com design contemporâneo, o 19M abriga doze ateliês, celebrados por suas criações artesanais e sua longa atuação na alta costura. Ali, 700 artesãos e especialistas produzem desde botões, luvas e acessórios em plumas a bijuterias, sapatos e chapéus.

Em meados dos anos 1980, a Chanel começou a comprar as primeiras oficinas, com as quais a grife já trabalhava.

O objetivo é preservar e promover o know-how raro dessas empresas francesas. Os ateliês corriam o risco de desaparecer por falta de renovação da mão-de-obra.

Ironia do destino, Coco Chanel foi uma das raras no mundo da haute couture a não trabalhar com a Lesage. Como Albert e Marie-Louise forneciam bordados para sua rival Elsa Schiaparelli, a estilista francesa temia ser copiada. Tudo, no entanto, mudaria com a chegada de Lagerfeld a Chanel, em 1983.

Ele já trabalhara com a Lesage, nas outras casas de alta costura por onde havia passado. Além de trazer os bordados para a Chanel, fez questão que as bordadeiras continuassem criando para outros costureiros, como acontece até hoje.

Uma das peças mais famosas da empresa de bordados, por exemplo, é de 1988, para Yves Saint-Laurent. Em homenagem ao pintor Vincent Van Gogh, o casaco Girassóis levou mais de 600 horas para ficar pronto e, em 2019, foi vendido em um leilão da Christie’s, em 2019, por € 382 mil (cerca de R$ 2,3 milhões, em valores atuais).

A expansão do ateliê

Ao longo de todo o percurso da exposição na Galeria do 19M, fica evidente porque os bordados da Lesage são comparados a obras de arte. Como no passado, a produção, feita à mão, segue etapas precisas — sempre as mesmas, seja para a alta costura ou para o prêt-à-porter.

O trabalho é feito com agulhas ou um ganchinho tipo crochê, chamado "lunéville", em homenagem à cidade onde a ferramenta foi inventada, em 1867. Além de inovar nas técnicas de bordados, o que inclui um sistema para fundir tonalidades, a Lesage também ganhou fama por seus seus desenhos considerados de vanguarda.

E o leque de materiais utilizados é amplo — pedrarias, fitas ou plumas, tudo pode ser bordado nos mais diferentes tecidos, inclusive couro, pela Lesage. Há peças excepcionais na mostra, como dois casacos longos da Chanel, um deles inspirado na decoração de biombos japoneses, com uma riqueza de detalhes impressionante.

Subsidiária da Chanel, a Paraffection fica no 19M, sede de doze ateliês, onde trabalham cerca de 700 artesãos (Foto: Reprodução presse.le19m.com)

Duas das peças mais famosas da Lesage são os casacos para a coleção de 1988 de Yves Saint-Laurent, em homenagem a Van Gogh. O batizado "Girassóis" (à esquerda) foi leiloado em por € 382 mil (Foto: Reprodução museeyslparis.com)

Até hoje, as bordadeiras de Lesage usam uma espécie de agulha conhecida como "lunéville" e desenvolvida em 1867 (Foto: Camille Brasselet)

Apenas em 1983, com a chegada de Largerfel, a Chanel começou a trabalhar com a Lesage (Foto: Clarisse Aïn)

Como no passado, a produção da Lesage segue sendo feita, em grande parte, à mão (Foto: Camille Brasselet)

É impressionante a riqueza de detalhes de dois casacos longos bordados para a Chanel. Um deles tem a padronagem inspirada nos biombos japonese (Foto: Clarisse Aïn)

A exposição "Lesage — 100 anos de Moda e Decoração" fica em cartaz até 5 de janeiro de 2025 (Foto: Clarisse Aïn)

Albert e Marie-Louise Lesage criaram a empresa, ao adquirir o ateliê de bordados Michonet, em operação desde meados do século 19. François Lesage, filho dos fundadores, assumiu a empresa em 1949, aos 20 anos. Rapidamente, Christian Dior, Yves Saint-Laurent, Pierre Balmain e Hubert de Givenchy se tornaram clientes. Décadas depois vieram Jean-Paul Gaultier, Thierry Mugler e Christian Lacroix, entre vários outros.

A expansão da Lesage ocorreu em um momento em que as casas de costura deixaram de ter seus próprios ateliês de bordados, quando uma nova geração de costureiros começou a surgir, no início da década de 1950.

“A Lesage é antes de tudo uma aventura humana, de uma família e de um homem, François Lesage”, defende Pavlovsky. “E também uma história de costureiros e de suas visões das atividades de bordados desde 1924.”

Também na decoração

No início dos anos 1990, François Lesage decidiu diversificar as atividades e criou um ateliê têxtil, especializado no tweed de lã, produzido inicialmente para as coleções de prêt-à-porter da Chanel e depois para outras casas de alta-costura.

Seu filho, Jean-François, expandiu os negócios de bordados para a área de decoração, fundando a Lesage Intérieurs, integrada a Paraffection, em 2014.

Além de excelência técnica, considerada única, a Lesage possui a mais importante coleção de bordados de arte do mundo. São 75 mil amostras, guardadas a sete chaves.

Algumas delas saíram dos arquivos e podem excepcionalmente ser vistas na exposição.

As peças foram escaneadas em 3D, o que permite observar em detalhes o trabalho de alguns dos períodos mais marcantes da manufatura francesa.

Funciona também no 19M a Escola Lesage, para formar bordadeiras profissionais, A prática exige anos de formação técnica e artística. Há 281 manufaturas de arte na França, segundo o Ministério da Cultura. Ou seja, ainda há muita oportunidade para a Chanel ampliar a sua Paraffection.