Cansado da representação negra na indústria literária, autor negro escreve livro carregado de clichês raciais, imaginando que o mercado entenderá a piada. Mas não. O livro não só é levado a sério, como se torna um sucesso de crítica e de público.
Essa é a sinopse de American Fiction, uma sátira ao mundo editorial, por ainda insistir em reduzir o negro a papéis de criminosos, escravos, serviçais ou vítimas de violência policial. Desde a sua première mundial, no Festival de Toronto, onde levou o Prêmio do Público, o filme está cotado para concorrer ao Oscar.
No Globo de Ouro, a premiação da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood, que serve de prévia para o Oscar, ele recebeu duas indicações. Na cerimônia agendada para o dia 7 de janeiro, em Beverly Hills, American Fiction concorre como melhor comédia ou musical e como melhor ator (com Jeffrey Wright) no mesmo gênero.
A inspiração veio do livro Erasure ("Apagamento", na tradução literal), lançado em 2001, pelo professor Percival Everett, que questiona por que as obras negras geralmente cedem às exigências do mercado. “O livro poderia ter sido publicado ontem, por sua atualidade e sua relevância”, afirmou Cord Jefferson, o diretor do filme, em encontro virtual, do qual o Neofeed participou.
“A narrativa sobre os negros é reiterada indefinidamente porque a indústria de entretenimento gosta de se repetir o tempo todo, assim como a mídia”, disse Jefferson, ao explicar por que a representação caricata do negro na cultura não costuma ser desafiada.
“A ideia é sempre replicar o que fez sucesso no passado, como os filmes sobre escravidão, refeitos continuamente. Toda indústria é avessa ao risco, evitando ser a primeira a mudar algo e talvez perder dinheiro”, contou Jefferson, que estreia como diretor com American Fiction, ainda sem data para estrear nas salas de cinema do Brasil.
A trama gira em torno de Thelonious “Monk” Ellison (vivido por Jeffrey Wright), um escritor negro estressado com a rejeição de seus últimos três manuscritos por parte das editoras. De acordo com o seu agente, Arthur (John Ortiz), o mercado não considera o seu trabalho “suficientemente negro” para ser publicado.
“Eles querem que eu escreva sobre um policial matando um adolescente ou uma mãe solteira criando cinco filhos?”, pergunta o personagem, irritado. A sua frustração aumenta ao descobrir que uma autora negra, Sintara Golden (Issa Rae), é a nova sensação literária, com o livro We’s Lives In Da Ghetto, ao reforçar os estereótipos de pobreza, criminalidade e violência que ele tanto quer evitar.
No espírito de desforra, Monk resolve escrever o romance “mais negro possível” e o apresenta ao seu agente. “O que é mais negro do que pais caloteiros, rappers, crack e um protagonista morto pela polícia no final?”, provoca o autor, que quer usar o pseudônimo de Stagg R. Leigh, para não ser reconhecido.
Monk não espera que o livro desperte o interesse do mercado. Tudo o que ele quer é que o seu agente o envie às editoras, para “esfregar no nariz” delas a “porcaria” que elas costumam esperar dos autores negros.
“Esse livro é uma expressão de como estou farto de tudo isso”, diz Monk, sem imaginar que o livro, concebido como piada, será comprado por uma editora de prestígio. E pela maior quantia que ele já recebeu (mesmo com os livros que escreveu seriamente): US$ 750 mil. O seu agente até brinca que o novo trabalho é a piada mais lucrativa que Monk já contou.
“No mundo aparentemente ilimitado da ficção, ainda há uma espécie de restrição no que diz respeito à percepção das pessoas sobre como é a vida negra e uma rigidez quanto às histórias que elas esperam ver contadas por autores negros”, comentou o cineasta, que iniciou a carreira como jornalista.
“Naquela época, semanalmente, alguém sempre vinha até mim perguntar se eu queria escrever sobre a morte de Trayvon Martin [assassinado em 2012] ou sobre a morte de outro adolescente negro desarmado, nas mãos da polícia”, lembrou Jefferson, filho de uma mulher branca e de um homem negro. “Era como uma porta giratória de miséria com a qual eu era forçado a lidar todos os dias”, lamentou.
E a mesma situação se apresentou quando Jefferson começou a trabalhar no cinema e na televisão. “Pensei que finalmente seria capaz de abrir minhas asas e escrever sobre negros em diferentes situações, explorando a profundidade, a amplitude, a complexidade e as nuances da vida negra. Talvez com negros no espaço ou montando dragões”, contou ele.
Mas não demorou muito para que Jefferson fosse abordado por produtores com a pergunta inevitável: “Você quer escrever um filme sobre um adolescente negro morto pela polícia?”. A resposta foi um sonoro “não”.