A festa bem podia ser na Mata do Fundão, da Turma do Pererê. Ou em Caratinga, onde Ziraldo nasceu e sobrevivem apenas as lembranças de infância, os pratos da cozinha mineira tão deliciosos que a mãe e a avó faziam. Mas está programada para ser em casa mesmo, no Recanto da Saudade, perto da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde mora com a esposa Márcia.

Ziraldo completa 90 anos nesta segunda, 24 de outubro, uma data que se confunde com a história do Brasil que tanto intercedeu, interferiu e ajudou a forjar, sempre no melhor sentido. E fez dele um dos grandes artistas gráficos em todo o mundo nos últimos 70 anos.

O mestre dos mestres que deu outra dimensão ao humor gráfico político, ao design e à literatura infantil, anda quieto, fala pouco, enquanto se recupera de um AVC ocorrido em setembro de 2018, que o deixou em estado grave. A cabeça, no entanto, continua a mil.

A confraternização pela data está programada para ser íntima, com filhos e netos, no domingo e na segunda. Não faltará o pudim de leite, seu doce preferido, como bom mineiro que é, como diz o enteado Cláudio da Rocha Miranda Filho.

Ele conta que, para se divertir, o artista adora assistir vôlei, basquete e outros esportes na TV. E continua trabalhando. Por causa das sequelas, não desenha mais, porém contribui com ideias e insights para os projetos que são desenvolvidos a partir de sua obra. Ziraldo continua a ser um vulcão. Se parar, a cabeça explode.

90 Maluquinhos

A celebração começou em agosto, com o livro Ziraldo – Memórias, que traz a histórica entrevista que deu em 2012 ao Jornal da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), organizado pelo editor Francisco Ucha, que também foi o responsável pela colhida do depoimento.

“A entrevista deveria durar 40 minutos e se estendeu por quase quatro horas e a motivação foram seus 80 anos”, explica Ucha. A segunda parte foi por conversas telefônicas e e-mails. “Ele estava muito contente, bem de vida e de saúde e repassamos toda a história, sem perder o tempo precioso de só falar do Pasquim, como costumam fazer – falamos das amizades, da participação dele no cinema etc.”.

Coube à Editora Melhoramentos cuidar da maior parte da festa, focada no livro O Menino Maluquinho, que, desde 1980, teve 18 edições, 135 reimpressões e mais de 4,1 milhões de exemplares vendidos. Claro que ganhou uma edição especial.

Um dos destaques desse pacote é um livro inédito a ser lançado em novembro, 90 Maluquinhos por Ziraldo - Histórias e Causos, organizado pelo cartunista e editor Edra, que reúne 45 cartunistas e 45 escritores, para contar um episódio pitoresco ou significativo envolvendo Ziraldo. Entre eles estão Angeli, Aroeira, Franco de Rosa, Jota, Mauricio de Sousa. Entre os escritores, estão Luis Fernando Veríssimo, Míriam Leitão, Pedro Bandeira, Ruth Rocha, Zuenir Ventura.

Ziraldo com a edição japonesa de Flicts

“Em plena ditadura militar, quando amigos meus e dele eram encarcerados e torturados, os americanos botaram o tal Armstrong na Lua, e todo mundo pensava que ele ia comer queijo de Minas. Ao contrário, as primeiras fotos daquele solo mostravam uma cor estranha, desconhecida, entre o creme e o barro, entre o café com leite e acorde coco, uma cor tão desconhecida por nós quanto a própria Lua. E o que produz Ziraldo? O melhor poema gráfico da história: Flicts", conta o escritor Pedro Bandeira.

Sobre a homenagem, o irmão e cartunista Zélio escreveu: "Que beleza, senhoras e senhores, temos aqui o livro escrito e ilustrado por 90 amigos, fãs e admiradores do meu irmão mais velho e de suas obras. Fico feliz por fazer parte desta festa de admiração, amor e carinho por quem tanto aprendi a apreciar. Esta inesperada e feliz coincidência foi, pois, incorporada como parte na agenda das comemorações dos noventa anos dele!"

E-book gratuito

Outro lançamento inédito é Especial Ziraldo 90 anos: Dicas para levar suas histórias e personagens para a sala de aula, um e-book gratuito voltado para educadores. A intenção é estimular o contato dos jovens com a leitura.

Clássicos como Flicts, O Bichinho da Maçã, Meninas e claro, O Menino Maluquinho, são a base para o material dividido em cinco capítulos nos quais educadores encontram indicações de leitura e atividades para desenvolvimento de habilidades como leitura, interpretação e pensamento crítico. Imaginação e criatividade, marcas do artista, também fazem parte dos exercícios propostos.

A festa ziraldiana inclui edições especiais de outros livros marcantes, como O Bichinho da Maçã – vencedor do Prêmio Jabuti – e A Menina Nina, que completam 40 e 20 anos, respectivamente, e ganham edições comemorativas.

-- Leia o depoimento da neta de Ziraldo, Nina Amarante, cedido com exclusividade ao NeoFeed

Em quatro décadas, o primeiro vendeu mais de 250 mil. O segundo passou de 30 reimpressões e 130 mil exemplares vendidos. Nesses 42 anos, somente na Melhoramentos, o autor já lançou mais de 200 obras, entre literatura, livros de pano e de atividades. Tudo que ele fez foi cuidado pela editora Leila Bortolazzi.

Homenagem do cartunista Edra no livro "90 Maluquinhos"

Acima de tudo, os dois se tornaram grandes amigos. Leila destaca a intensidade do autor nas ideias que realizaram. “Podemos considerar que os livros literários foram concebidos pelo autor, sem participação do editor. Já os projetos de séries e coleções foram desenvolvidos em parceria”, observa.

Para Leila, a literatura de Ziraldo se conecta diretamente com a criança. Sua linguagem é simples e direta, sendo profunda em seu conteúdo. “É uma linguagem universal. Ele chega ao mundo todo, pois seus livros já foram publicados em diversos países”.

Incentivo familiar

Primeiro de sete irmãos, seu nome é a junção dos nomes dos pais, a costureira Zizinha Alves Pinto e o guarda-livros Geraldo Alves Moreira Pinto. Ziraldo sempre teve o incentivo da família para explorar seu talento.

Tanto que, com apenas 6 anos, publicou o primeiro desenho no jornal A Folha de Minas. Sua formação foi autodidata. Leu muito, desde pequeno, escritores como Viriato Correia e Clemente Luz e apaixonado pelos quadrinhos de Hal Foster (Príncipe Valente), Alex Raymond (Flash Gordon), V. T. Hamlin (Brucutu) e R. B. Fuller (Sir Tererê).

Com 16 anos, transferiu-se para o Rio de Janeiro, queria ser desenhista de quadrinhos, como mostra uma carta sua publicada na revista Herói, do editor e ídolo Adolfo Aizen, de 1948. Cursaria o científico, mas levou na bagagem sua produção de caricaturas, histórias em quadrinhos, cartazes políticos, ilustrações, contos e poesias.

"O Menino Maluquinho" desde 1980 teve 18 edições, 135 reimpressões e mais de 4,1 milhões de exemplares vendidos

Estava longe de um estilo próprio, mas publicou desenhos nas revistas Coração, Sesinho, Vida Infantil e Vida Juvenil e O Malho. Dois anos depois, voltou para Minas Gerais, prestou serviço militar e ingressou na faculdade de Direito.

Em 1957, formado, passou a publicar regularmente na revista A Cigana e, no ano seguinte, mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro e começou a trabalhar na revista O Cruzeiro Internacional.

Nos anos de 1960, criou uma turma para o personagem Saci-Pererê, que já aparecia na revista O Cruzeiro, e acabou virando desenhista de histórias em quadrinhos com o lançamento da revista Pererê, da qual faziam parte o Saci e toda a turma – a revista deixou de circular no mês seguinte ao golpe militar e Ziraldo sempre acreditou que isso aconteceu por pressão da ditadura que começava.

O primeiro livro infantil, Flicts, saiu em 1969, e aborda a história de uma cor que não encontra seu lugar no mundo. Nessa época, sua obra como desenhista e cartunista já havia conquistado reconhecimento internacional, com premiações, como o Oscar Internacional de Humor, arrematado no 32.º Salão Internacional de Caricaturas, em Bruxelas. Tornou-se o primeiro latino-americano a ser convidado a fazer um cartaz para o Unicef.

Ainda em 1969, quando era editor da revista masculina Fairplay, tornou-se um dos fundadores do jornal O Pasquim, ao lado de Jaguar, Millôr Fernandes, Tasso de Castro, Claudius e Sérgio Cabral, entre outros, que circulou até 1991.

Como sempre expressou suas posições políticas, durante a ditadura militar no país, foi preso diversas vezes. Em paralelo à carreira de enorme sucesso que se seguiu com O Menino Maluquinho, continuou na militância política e, irreverente, fundou em 1999 a revista Bundas. Depois, a revista Palavra e o jornal Pasquim 21.