O espetáculo dura poucos minutos. Assim que as esculturas de gelo de 20 centímetros, representando humanos sem rosto, são instaladas em espaços públicos, inicia-se o inevitável processo de derretimento. Em instantes, esses “cidadãos anônimos” viram água e evaporam — mas, não sem antes deixar marcas nas pessoas de verdade, que param para acompanhar o Monumento Mínimo, ação urbana assinada pela artista mineira Néle Azevedo, de 75 anos.

A obra, que já completou 20 anos e, nesse período, passou por 27 cidades em 15 países, é um dos eixos do livro Pela Matéria no Mundo, com previsão de lançamento no segundo semestre de 2025, pela Editora Senac. Mais do que um registro de sua produção, ele revisita a trajetória artística de Néle e os temas que sempre estiveram presentes em seus trabalhos e pesquisas: impermanência, memória e anonimato.

O livro é dividido em quatro capítulos, inspirados nos elementos da natureza. O capítulo "Fogo" é dedicado às suas esculturas de ferro fundido, produzidas no fim da década de 1990. As obras de início de carreira renderam o prêmio-aquisição no Salão de Santo André, em São Paulo, e uma exposição individual no Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro. Foi também nessa fase que a artista experimentou expandir suas figuras do espaço expositivo para o público ao colocar duas esculturas sentadas no gradil da Capela do Morumbi, em São Paulo.

As páginas de "Ar" concentram os trabalhos suspensos. Entre eles, Exercício de Habitar o Vazio, uma escultura de ferro pendurada no Claustro do Centro Cultural São Francisco, em João Pessoa, de 2006. E Estado de Suspensão, que estreou no Teatro Municipal de São Paulo, em 2019, mas já passou por Berlim, na Alemanha, e Narni, na Itália. Em "Terra", a artista investiga suas raízes e os gatilhos que impulsionam sua criação.

Mas é no capítulo "Água", que Néle trata de Monumento Mínimo, sua obra mais emblemática e responsável por sua consagração internacional. Com ela, a artista consegue sintetizar e levar ao extremo os temas que sempre estiveram presentes em suas pesquisas. “A arte está no processo, na efemeridade, no encontro entre as pessoas e na reflexão que cada uma carrega depois de ver as esculturas desaparecerem”, diz Néle, em conversa com o NeoFeed.

Ao contrário das figuras anônimas de gelo, que derretem rapidamente, Néle demorou décadas até se descobrir artista. Nascida em 1950, em Santos Dumont, Minas Gerais, ela cresceu em uma família com poucos recursos. "No meu mundo, não cabia nem sonhar o que eu queria ser", relembra Néle.

A mãe, viúva, administrava um botequim para sustentar os quatro filhos. Leitora voraz, Néle sempre gostou de aprender. Por isso, sua ideia de futuro era estudar e encontrar um emprego estável para ajudar a família. Formou-se em pedagogia e, em 1970, conseguiu passar em uma vaga de professora em uma fazenda no interior mineiro.

Na véspera da viagem, no entanto, um telegrama mudou sua vida. Ali, estava a notícia de que havia sido aprovada no concurso do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). “Eu não fazia ideia de onde esse emprego me levaria, mas, na mesma hora, decidi que iria para onde quer que me levasse. Qualquer coisa era bem melhor do que ser professora na roça”, conta.

Desenho tosco

Foi assim que ela chegou a Aimorés, uma pequena cidade mineira marcada pela violência. “Toda semana matavam umas oito pessoas”, recorda, com horror. Durante um mês, Néle morou em um hotel de caminhoneiros: “O banheiro coletivo, no corredor, tinha furos de bala na porta!”.

Sem opções de lazer, passava as noites sentada na porta desse hotel, observando o movimento na rua. Até que, certo dia, a esposa de um médico local lhe convidou para viver com a família:  aquele não era um ambiente seguro para uma jovem.

Quatro meses depois, Néle foi transferida de Aimorés para Barbacena, onde conheceu Eduardo, com quem se casou antes de se mudar para São Paulo, em 1974 — onde tiveram um casal de filhos.

Na capital paulista, ela começou um curso de desenho. “Na minha primeira aula, o professor pediu que desenhássemos nossa própria imagem. Fiz um desenho tão tosco, mas tão tosco, que nem vou colocar no livro”, confessa, entre risos. Só que, em vez de desanimar, aquela limitação também abriu o desejo de se superar e ela ficou no curso por três anos.

“A arte está no processo, na efemeridade, no encontro entre as pessoas e na reflexão que cada uma carrega depois de ver as esculturas desaparecerem", diz a artista (Foto: Instagram @neleazevedo)

As esculturas de ferro fundido foram produzidas no fim da década de 1990 (Foto: Divulgação)

A escultura "Exercício de Habitar o Vazio", de 2006, está pendurada no Claustro do Centro Cultural São Francisco, em João Pessoa (Foto: neleazevedo.com.br)

Somente aos 43 anos é que Néle ingressou na Faculdade Santa Marcelina para estudar Artes Visuais. “Quando pisei ali, pela primeira vez, senti que era o meu lugar. “E a arte abriu várias janelas. Comecei a me interessar por política e por vários outros assuntos”, diz ela, que aquela altura já estava separada de Eduardo.

Entre os temas que despertaram seu interesse, um em especial chamou sua atenção: os monumentos tradicionais. “Pensa naquela estátua do Anhanguera, na Avenida Paulista. Esse bandeirante dizimou os povos indígenas. Então, qual é a relevância desse personagem para as pessoas?”, questiona.

A inquietação foi o ponto de partida para sua pesquisa no mestrado em Artes Visuais, da UNESP. Mas a certeza de seguir por esse caminho veio ao assistir a um espetáculo da Denise Stoklos, que tinha a canção Mestre-Sala dos Mares, de João Bosco, sobre João Cândido, o "Almirante Negro", líder da Revolta da Chibata.

“Durante um tempão, aquele trecho da música ‘Salve o navegante negro/Que tem por monumento/As pedras pisadas do cais, mas salve' não saía da minha cabeça”, conta. “Tive ainda mais certeza de que queria criar um monumento que homenageasse os esquecidos e os anônimos”.

Ela testou diferentes materiais — barro, ferro e resina —até que o gelo surgiu como o elemento ideal. Ao derreter, ele simboliza a invisibilidade dos anônimos e a fragilidade da existência humana.

O choro na Sé

Em 2005, Néle estreou seu projeto, o Monumento Mínimo, na Praça da Sé, com apoio do Sesc do Carmo-SP. Antes, de janeiro a abril, depois de dar aula, a artista fazia sozinha as esculturas, um pouco de cada vez, até chegar às 290 figuras. Chamou os amigos apenas para ajudar na montagem. “Quando vi tudo pronto me dei conta do que havia conseguido fazer", diz. "Sentei-me no chão da Sé e chorei”.

Atualmente, a ação urbana de Néle já percorreu cidades como São Paulo, Brasília, Salvador, Tóquio, Florença, Berlim, Havana, Paris, Taipei e Belfast. E, por onde passa, ganha a notoriedade não apenas do público, mas da mídia. Sua obra teve destaque em jornais importantes, entre eles, The Guardian e The Mirror e em muitas revistas especializadas, ao redor do mundo.

Embora o projeto tenha começado como uma crítica ao conceito de monumento tradicional, ao longo dos anos, a intervenção também tem ganhado outros significados.

Em 2009, por exemplo, mil esculturas de gelo derreteram sob o sol da capital alemã como símbolos dos efeitos das mudanças climáticas, chamando a atenção para um relatório da ONG WWF sobre os riscos do aquecimento do Ártico.

Em 2014, 5 mil estatuetas espalhadas nos degraus da Chamberlain Square, em Birmingham, no Reino Unido, lembravam homens e mulheres perdidos durante a Primeira Guerra Mundial.

“Os monumentos oficiais são feitos para a eternidade e eu fiz um para desaparecer”, declara. Ainda assim, o público não consegue evitar uma conexão emocional com os pequenos anônimos de gelo. Muitas tiram selfies, outras se emocionam. Ninguém fica indiferente e à força do Monumento Mínimo.