Protagonista de uma fascinante e controversa história de vida, o magnata francês Bernard Tapie (1943 - 2021) é personagem central de uma nova minissérie da Netflix. À revelia da família, que não poupou críticas ao que considera excessos ficcionais da produção de caráter biográfico, "As Mil Vidas de Bernard Tapie", concebida pelo diretor Tristan Séguéla e pelo roteirista Olivier Demangel, chega ao público da plataforma essa semana.
À despeito da polêmica, dupla seguiu em frente reforçando que se trata mesmo de uma ficção baseada em mais de quarenta biografias e artigos de jornais. Em sete episódios de em média 50 minutos cada e em ritmo narrativo de montanha-russa, a produção persegue os altos e baixos de três décadas (1966- 1997) da trajetória do carismático empresário, dirigente esportivo, apresentador de TV, cantor, ator e proeminente político, cuja vida pública, desconhecida pelos brasileiros, foi acompanhada pelos franceses como um frenético thriller.
E aqui ligue o alerta de spoiler para alguns desses fatos. Já nos segundos iniciais do primeiro episódio, a série revela o desfecho de um grande escândalo: a prisão de Tapie, em 1997, decorrente de sua condenação a oito meses de reclusão.
Tapie havia comprado o Olympique de Marselha, em 1987, e cumpriu pena por ter subornado três jogadores do Valenciennes na final do Campeonato Francês de 1993. Dias depois, seu time conquistaria o título inédito da Champions League.
Lançado o enigma de como o protagonista foi parar na prisão, fato revelado só no último episódio, a história retrocede para 1966, quando um Tapie aspirante a cantor, municiado de bela voz e pinta de galã (interpretado por Laurent Latiffe), é destaque em um show de calouros da TV, chancelado por um júri que aposta em seu sucesso.
A constatação rápida, pelo contrário, é de fracasso retumbante e de uma dívida de 30 mil francos empenhados na gravação de um compacto com músicas de sua autoria.
Determinado, e sempre às voltas com ideias mirabolantes, Tapie tem, em 1970, o insight que o leva a seu primeiro êxito empresarial. A grande sacada foi a criação de uma loja de TVs e de outros eletrodomésticos, cujo trunfo para o alcance progressivo de lucros foi um sistema de assinaturas que dava aos clientes, nas esporádicas ocasiões em que eles teriam condições de comprar tais produtos, descontos significativos.
Pouco depois, Tapie constata que poderia fazer fortuna investindo na recuperação de empresas fadadas à falência, como a Diguet-Demy, um tradicional parque gráfico francês comprado por ele pelo valor simbólico de 1 franco.
Em nova jogada, desta vez envolvendo métodos pouco ortodoxos, o futuro magnata arremata a fábrica de baterias e pilhas Wonder, um patrimônio da indústria francesa que também estava em vias de extinção.
Nascido em berço proletário, filho de um encanador ligado ao movimento sindical e amigo de operários da Wonder, Tapie conta com a ajuda do pai para convencer os trabalhadores de que sua condução à frente da empresa seria a única forma de salvar o negócio.
Mas ele também é obrigado a sabotar a oferta de um grande investidor, Alexis Clairet de Granval – amigo de sua segunda esposa e inseparável sócia, Dominique Tapie (interpretada por Joséphine Japy) – que estava prestes a fechar negócio com os acionistas da Wonder.
O concorrente sucumbe a uma mirabolante trama: a gravação de um relato comprometedor obtido por Tapie com grampos instalados num quarto de hotel. Cinco anos depois da bem-sucedida trapaça, em 1989 a Wonder é vendida para empresários norte-americanos, com um ganho de capital equivalente a 72 milhões de euros.
Naquele mesmo ano, alçado à vida política como deputado, por Marselha, eleito pelo partido de esquerda MGR, Tapie estabelece uma plataforma de defesa da juventude proletária e suburbana, e também encarna o papel de principal opositor do líder da extrema-direita, Jean Marie Le-Pen.
Postura de embate, documentada em um explosivo debate televisivo, que abre caminho para que, em 1992, Tapie receba o convite, do então presidente François Mitterrand, para assumir o Ministério das Cidades.
Em decorrência de uma fraude financeira relacionada à sua gestão na Diguet-Demy, sua passagem pelo governo Francês é efêmera. Pressionado por Mitterrand, depois de propositalmente vazar para a imprensa uma mensagem de apoio do presidente às acusações que vinha sofrendo, Tapie se vê forçado a renunciar com apenas 53 dias de pasta.
Por seu caráter ficcional, "As Mil Vidas de Bernard Tapie" não compreende, contudo, o imbróglio jurídico envolvendo a venda da Adidas para o Crédit Lyonnais, o que daria mais um episódio vertiginoso.
Entre 1990 e 1993, Tapie foi dono da gigante alemã de produtos desportivos. Mas acusou o banco público de enganá-lo, uma vez que vendeu a companhia por a 315,5 milhões de euros, em fevereiro de 1993 e menos de um ano depois o Crédit a revendeu por 701 milhões de euros.
Foi um processo de reviravoltas extremas, como uma indenização de 400 milhões de euros a favor do empresário. Mas, em contrapartida, o risco de uma nova prisão, sob suspeita de arbitragem fraudulenta. Morto aos 78 anos em decorrência de um câncer, saiu de cena sem ver o fim do embate.