TROMSO (Noruega) – “Entre Mulheres” passa a limpo o caso de mulheres violentadas à noite, sedadas durante o sono, na colônia menonita de Manitoba, na Bolívia. E, por onde passa, o filme desperta a mesma indignação de quando os abusos sexuais vieram à tona, em 2009, quando um grupo de homens foi preso, por estuprar sistematicamente mais de 150 mulheres, enquanto elas dormiam.
Com lançamento agendado no Brasil para 2 de março, o drama dirigido pela canadense Sarah Polley foi o grande vencedor da 33ª edição do TIFF, o Festival Internacional de Cinema de Tromso, encerrado em 22 de janeiro, no norte da Noruega. Dois dias depois, “Entre Mulheres” também recebeu duas indicações ao Oscar: de melhor filme e de melhor roteiro adaptado.
A trama é baseada no livro Women Talking, da escritora Miriam Toews, que cresceu em colônia menonita no Canadá. Em 2018, ela escreveu a história de horror, vivida na Bolívia entre 2005 e 2009, pelas mulheres dessa comunidade cristã ultraconservadora que rejeita a modernidade e a tecnologia (incluindo eletricidade e automóveis), pregando uma vida simples.
O caso culminou com a condenação (a 25 anos de prisão) de sete homens da colônia, em 2011. Estima-se que os menonitas somem atualmente mais de 1,5 milhão de praticantes, espalhados em cerca de 60 países. Seu nome vem de um reverendo do século 16, Menno Simons (1496-1561), de quem eles seguem até hoje os ensinamentos.
Tanto o livro como o filme não colocam o foco nos ataques noturnos ocorridos nessa comunidade – originária das regiões onde hoje se encontravam a Alemanha e a Holanda. Até porque seria difícil digerir essas passagens, já que o registro de vítimas inclui idosas e crianças (a mais nova, de apenas três anos).
Mais importante é a ação que essas mulheres vão tomar diante do pesadelo, que ficou conhecido como “estupro fantasma”. Muitas delas têm lembranças desconexas horripilantes dos crimes, descobertos depois que dois homens foram flagrados tentando invadir uma casa. A partir desses depoimentos é que os demais estupradores foram denunciados.
Logo no início de “Entre Mulheres”, alguns homens já estão presos em uma cidade nas redondezas, acusados de violentar suas vizinhas e até suas familiares nessa comunidade isolada – transposta aqui para os EUA (O filme é sobre a história na Bolívia, mas se passa nos EUA). Para libertá-los, mediante o pagamento de fiança, o restante dos homens da colônia saem em busca dos estupradores, deixando as mulheres sozinhas.
“Eles nos deram dois dias para perdoar os agressores, antes que eles voltem para casa”, conta uma das personagens do filme. “Nós mal sabíamos ler e escrever, mas naquele dia nós aprendemos a votar”, completa ela, lembrando as três opções que tinham. Elas podiam escolher entre não fazer nada, ficar e lutar ou simplesmente escapar dali.
No encontro secreto realizado em um celeiro, algumas delas ainda estão sob o impacto da confirmação de que eram, de fato, abusadas sexualmente nas próprias casas por membros da colônia, voltada à atividade agropecuária. Antes de entrar, o grupo de homens borrifava um spray pelas janelas dos quartos em que elas dormiam. Eles usavam um remédio empregado para anestesiar o gado, antes da castração.
Toda a família era sedada, incluindo os homens da casa. As mulheres e crianças acordavam no dia seguinte sem roupa ou com a roupa suja de sangue, sêmen ou terra – já que algumas eram arrastadas e violentadas nos campos. Elas reclamavam de letargia e de dores nas partes íntimas, mas não conseguiam se lembrar exatamente do que tinham acontecido. Só tinham a certeza de que tinham sido atacadas, mesmo inconscientes.
Durante muito tempo, elas acreditaram que o demônio tinha invadido a casa, para punir as mulheres dos seus pecados. Tudo seria uma espécie de provação, para deixá-las ainda mais próximas de Deus no final. Essa parecia ser a única explicação possível, sobretudo dentro de uma comunidade de regras tão restritas onde a mulher é mantida analfabeta e sem contato com o mundo exterior.
Com medo e com vergonha, a lei do silêncio imperava. Por mais traumático que fosse, o assunto era abafado na própria família depois dos ataques. Todos seguiam como se nada tivesse acontecido. Pelo menos até as mulheres da colônia começaram a conversar entre si, percebendo que todas elas enfrentavam o mesmo terror de tempos em tempos.
Inicialmente, porém, ninguém acreditou nos depoimentos delas. Elas foram chamadas de mentirosas e acusadas de usar a alegação de estupro para encobrir adultérios. Havia ainda outro diagnóstico para as queixas de abusos noturnos: “imaginação selvagem feminina”.
“Nós sabemos que não imaginamos esses ataques. Sabemos que estamos machucadas, infectadas, grávidas e aterrorizadas. E algumas de nós estão mortas”, afirma a personagem Salome, interpretada por Claire Foy.
Ela é uma das que querem justiça no filme, enquanto outras estão inclinadas a perdoar os homens, conforme pede a fé cristã. Scarface Janz, vivida por Frances McDormand, lembra as demais de que é preciso perdoar, caso elas queiram ir para o céu.
Inicialmente haverá um grande impasse, o que funciona para esquentar a discussão sobre fé, perdão, poder, patriarcado, sobrevivência e esperança que “Entre Mulheres” propõe. O principal mérito do filme está em justamente explorar toda a complexidade de uma situação dura de imaginar. E o que é melhor: sem fazer o espectador perder completamente a fé na humanidade no final.