Há 17 anos, a paulistana Gabriela Benicio desembarcou em Paris para uma pós-graduação na Sorbonne. Sem nem sonhar, firmou-se um dos nomes mais promissores no mercado mundial de vinho. Em março passado, o feito mereceu uma nova categoria no Michelin.

Na edição 2023, o guia mais célebre da França selecionou, pela primeira vez, personalidades do melhor serviço de vinho. Gaby, como é conhecida, foi a escolhida. Nenhum comentário sobre sua origem foi proferido na cerimônia, assim como nem é preciso dizer que, para francês que se preze, título de melhor no país, significa também do mundo.

A brasileira de fato revoluciona o olhar sobre a bebida que está em 85% das mesas dos restaurantes. Em vez de rodar taças e destilar descrições organolépticas, faz um blend de sensações e alquimia em harmonizações às cegas, nas quais costuma dispensar rótulos icônicos. 

“Não é só porque é Romanée-Conti ou Château Laffitte que vai ser maravilhoso. Se eu não disser nada e você provar, o que vai acontecer? O que me interessa é o que pode te atravessar, é fazer magia”, disse ela ao NeoFeed, em uma rápida visita que fez a São Paulo.

Ela pergunta para um comensal, por exemplo, o que ele gostaria de sentir. O frescor da tarde? Um banho de chuva? Ou investiga como a pessoa está se sentindo e a partir dessa definição propõe vinhos que despertem ou sintetizem a emoção.

A tradução de brancos, laranjas, rosés e tintos em “vibrações” tem menos de esotérico do que pode parecer. Pós-graduada pela Sorbonne no estudo das emoções no século 17, Gaby usa a compreensão do abstrato a seu favor. 

“Humilhar o comensal descrevendo notas dos vinhos pode ser mais fácil, mais esperado e até considerado certo, porque se tornou clichê”, dispara ela. “Quero que o vinho transfira algo, tenha química com quem o tome”, complementa.

A sommelière Gaby Benício e a chefe Amélie Darvas: a horta e o restaurante ao fundo, um antigo albergue medieval

Sua trajetória enológica começou no Haï Kaï, em 2012, restaurante no canal Saint-Martin que conquistou a crítica parisiense. Ao lado da chef Amélie Darvas, a experiência foi o embrião de um projeto muito maior e ainda mais inusitado – o Äponem.

A pelo menos 8 horas de carro de distância do antigo negócio, no extremo sul da França, a dupla subverteu um antigo albergue religioso medieval em um case da gastronomia. Reservar um de seus 16 lugares costuma levar meses.

Em parte, porque ele abre somente para seis refeições por semana (do jantar de sexta-feira ao almoço de segunda-feira). Se bem que, em Vailhan, vilarejo de 160 habitantes, faltariam habitués para os demais horários...

Adaptando-se às estações, os menus harmonizados têm valor fixo de € 210 e refletem uma gastronomia instintiva, regada a vinhos biodinâmicos. Mais do que isso, o restaurante propõe um novo modelo de trabalho. Ali, a sommelière premiada, a chef, a garçonete, a responsável pela pia e cada uma das mulheres do staff ganham o mesmo salário, sem um centavo de diferença.

A gestão revolucionária é coerente com a seleção de ingredientes e seu uso integral. Em contrapartida, implica que, em seu tempo vago, ela se dedique ao cuidado das sete hortas orgânicas da propriedade e às burocracias do negócio. 

Se Gaby não se vale das vinícolas mais famosas do país, Amélie não recorre a trufa e caviar. A nobreza vem do frescor e do que o terroir em que elas se inserem é capaz de contar por meio da bebida e da culinária que servem.

“O vinho e a comida falam para a gente de coisas muito íntimas, como acontece com o sexo e o orgasmo. Meu objetivo é permitir que a intimidade se estabeleça, é criar emoções”.

Äponem, vista e natureza ao redor

O projeto vanguardista não apenas foi recompensado com uma estrela Michelin como serviu de protótipo para o guia criar um astro paralelo – a estrela verde. Lançada em 2020, é uma distinção pela inovação sustentável, pela abordagem ambiental e, claro, por receitas que consideram o bem-estar do planeta.

Pode-se dizer que o Äponem vive em simbiose com a natureza que o rodeia, incluindo as vinhas antigas do Languedoc ou “o paraíso dos vinhos naturais”. Pelo conjunto da obra, além das três condecorações do Michelin, acumula uma série de outros prêmios e reconhecimentos, dentre os quais destacam-se Gault & Millau e Le Fooding.