Uma das cenas de “Dalíland”, a cinebiografia do pintor surrealista espanhol Salvador Dalí (1904 - 1989), resgata o momento de criação de uma de suas obras mais emblemáticas: “A Persistência da Memória” (1931).

Sozinho na cozinha, em uma noite quente, o jovem artista vê as bordas do queijo camembert derretendo na mesa. E, na sequência, como ele espera a volta da esposa que tinha ido ao cinema, seus olhos correm para o relógio de parede.

Foi o que bastou para o nascimento da obra, que pertence ao acervo do Museu de Arte Moderna (MoMa), em Nova York. Realizada com a técnica de óleo sobre tela, a pintura gerou várias interpretações e continua intrigando o observador.

É como se os relógios derretidos desafiassem o nosso entendimento do que é a matéria e ainda fizessem a rigidez do tempo se curvar diante da Teoria da Relatividade, de Albert Einstein. Outra interpretação associa o objeto mole à flacidez e à impotência sexual.

Mas não se vê a pintura em “Dalíland”, uma das atrações do Festival de Rio, que será encerrado neste domingo, 16 de outubro. Isso porque a cineasta Mary Harron preferiu não reproduzir a arte de Dalí no cinema. Em parte porque isso implicaria no envolvimento da Fundação Gala-Salvador Dalí na produção, além de elevar o valor do orçamento do longa-metragem (não revelado).

Conforme o comunicado divulgado às vésperas da première mundial, em Toronto, tudo foi feito dentro do que era permitido por lei, “sem incorporar qualquer material protegido por direitos autorais”. Isso foi uma resposta à reclamação pública da fundação por não ter sido consultada durante a produção para “exercer sua função de proteger a obra e a imagem do pintor”.

“Dalíland” realmente não precisou mostrar as obras para recriar o ambiente que instigava a imaginação do biografado, famoso pelo bigode longo e curvilíneo. Ainda sem data de estreia no circuito comercial, o filme parece mais preocupado em reproduzir o estado de espírito do excêntrico pintor nascido na região da Catalunha.

Dalí se tornou um ícone do surrealismo, ao criar um universo onírico, parecido com o dos nossos sonhos, geralmente com imagens deformadas, para refletir sobre questões universais. Como o desejo sexual, o sono ou a morte, sempre jogando com o estranhamento, ao unir objetos sem conexão entre si ou pintá-los em espaços completamente fora de seu ambiente.

Dalí se tornou um ícone do surrealismo, ao criar um universo onírico, parecido com o dos nossos sonhos, geralmente com imagens deformadas

Em “Dalíland”, quando o pintor é encarnado por Ezra Miller, na juventude, o espectador é transportado tanto para as paisagens que o cercavam, na Espanha, quanto para o seu mundo íntimo, com a mulher, a russa Gala Dalí (1894-1982), de personalidade forte.

Vivida aqui pela atriz Avital Lvova, a esposa sempre foi a grande musa do artista, sendo tema de vários retratos, além de ter tomado a frente dos seus negócios. Alguns trabalhos até foram assinados como ‘Gala Dalí’, em reconhecimento à contribuição da parceira, já que ele dizia pintar os quadros com o “sangue” de Gala.

As sequências da juventude são os flashbacks de “Dalíland”, já que o roteiro se concentra nos últimos anos da vida do pintor, na pele de Ben Kingsley. Enquanto o passado corresponde à fase inspiradora de Dalí, em sua terra natal, o artista já está quase se recusando a pintar nos anos 70, período em que mora em Nova York.

Nessa época, Dalí parece mais interessado em ser anfitrião das festas de aura decadente que promovia no hotel St. Regis, em Manhattan. Era lá que ele morava, pintava e ainda recebia seus convidados, geralmente modelos e personalidades (incluindo o artista Andy Warhol e o roqueiro Alice Cooper).

Quem força Dalí a pegar nos pincéis é Gala, como ficou conhecida Elena Ivanovna Diakonova (interpretada nesta fase pela atriz Barbara Sukowa). Aqui fica evidente o papel dominador que Gala exercia na relação, o que o filme explora de vários ângulos.

A esposa aparentemente o manipulava com facilidade, tratando-o muitas vezes como criança – algo que dá a impressão de agradá-lo. Gala não só negociava com galeristas e compradores, como usava o patrimônio do casal como bem entendia. Gala chegou a financiar a carreira de um de seus amantes jovens, o cantor de rock Jeff Fenholt (1950-2019), além de presenteá-lo com pinturas de Dalí e uma mansão.

O casamento peculiar com Gala é importante para entender alguns aspectos da obra de Dalí, sobretudo no que diz respeito ao sexo, muito presente em seus trabalhos. Biógrafos do artista acreditam que o pintor era virgem quando se casou com Gala.

Eles dizem ainda que Dalí era avesso ao contato físico, preferindo ser apenas voyeur no sexo, o que é retratado no filme. O quadro “O Grande Masturbador”, feito em 1929 e mencionado também na cinebiografia, seria um autorretrato de Dalí, segundo especialistas. Uma espécie de “confissão pública” de que o pintor não conseguia atingir o clímax na relação sexual.