Como diz a música do Engenheiros do Havaí, o Papa é pop e o pop não poupa ninguém. Pelo menos, não Clarice Lispector. Quase cinco décadas depois de sua morte, em 1997, aos 56 anos, a escritora está entre os pensadores mais compartilhados em memes na internet. De política a sexo, de religião a psicologia, não importa a área do conhecimento, sempre haverá uma frase de Clarice perfeita para a ocasião.

Ainda que muitos dos “ensinamentos” nunca tenham sido ditos ou escritos por ela, o burburinho nas redes sociais reacendeu, nos últimos anos, o interesse pela escritora ucraniana, naturalizada brasileira: biografias foram lançadas e romances, contos e crônicas, reeditados.

Agora, a editora Rocco leva para as livrarias uma produção de Clarice menos conhecida do grande público: a dos textos jornalísticos. Grandes personalidades entrevistadas por Clarice Lispector reúne 83 conversas da autora com algumas das figuras mais emblemáticas do cenário nacional — algumas estrangeiras.

Das entrevistas feitas para as revistas Manchete (1968-69) e Fatos & Fotos: Gente (1976-77), e para a obra De corpo inteiro (1975), 35 são inéditas em livro.

A antologia foi organizada pela professora Claire Williams, chefe do departamento de literatura e cultura brasileira do St. Peter's College, da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Ela é considerada uma das maiores especialistas em Clarice Lispector no mundo.

Claire observa que, se a escritora era mais conhecida por seus romances carregados de lirismo e por contos que impactam e intrigam o leitor, Clarice também foi uma repórter brilhante e prolífica. E uma das primeiras mulheres jornalistas do Brasil, tendo publicado entrevistas ao longo de toda a sua carreira, em paralelo à sua produção literária.

Como ela disse certa vez, seguiu no jornalismo em uma “tentativa de sobrevivência financeira”, pois a literatura não podia ser a principal fonte de renda.

Embora talvez pareçam de menor valor literário do que os romances e contos, diz a organizadora, essas entrevistas podem ser consideradas relevantes e reveladoras em relação ao resto da obra de Clarice. Especialmente quando analisadas sob uma perspectiva histórica, biográfica ou mesmo teórica, nos momentos em que a autora comenta com franqueza seus processos criativos e compartilha informações pessoais.

Assim como ocorria em sua literatura, Clarice desenvolveu uma maneira própria e radical de conduzir as conversas — desde as pautas e pesquisas sobre cada entrevistado, à preferência por anotar à mão em vez de usar gravador. Fez assim com escritores, músicos, dramaturgos, artistas de teatro, do cinema e da televisão, cientistas, professores, políticos, atletas, sambistas, jogadores de futebol e até mesmo duas primeiras-damas.

Com 420 páginas, o livro Clarice Lispector Entrevista custa R$ 109,90 (Foto: Editora Rocco)
Com 420 páginas, o livro custa R$ 109,90 (Foto: Editora Rocco)

Clarice quebrava o formalismo para deixar seus personagens à vontade, o que lhe permitia fazer aberturas das mais criativas. A ponto de convidá-los para que a conversa fosse em sua casa. E muitos foram lá.

Três perguntas se tornaram uma espécie de marca registrada, usadas para desafiar os entrevistados: “O que é a coisa mais importante do mundo?”, “O que é a coisa mais importante para você como indivíduo?” e “O que é o amor?”.

A primeira que fez foi com um polêmico autor da época. “Avisei a Nelson Rodrigues que desejava uma entrevista diferente. É um homem tão cheio de facetas que lhe pedi apenas uma: a da verdade. Ele aceitou e cumpriu”. Ela fez o dramaturgo e cronista a pergunta se ele era da esquerda ou da direita. A resposta: “Eu me recuso absolutamente a ser de esquerda ou de direita. Eu sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão”.

Sobre o arquiteto Oscar Niemeyer, escreveu: “É um homem com maneiras simples, sem vaidades, sem formalismos, com o olhar um pouco melancólico, um pouco desiludido e popular que acompanhamos tranquilos”.

Do papo com Chico Buarque, ela preferiu chamar de “Xico Buark”, grafia inventada por Millôr Fernandes numa noite no Bar Antonio's, Clarice escreveu: “Gostei [da grafia] como quando eu brincava com palavras em criança. Quanto ao Chico, apenas sorriu um sorriso duplo: um por achar engraçado, outro mecânico e tristonho de quem foi aniquilado pela fama”.

Sua relação com Tom Jobim era mais próxima: “Ele e eu já nos conhecíamos: foi o meu padrinho no Primeiro Festival de Escritores, quando foi lançado meu livro A maçã no escuro. E ele fazia brincadeiras: segurava o livro na mão e perguntava: ‘Quem compra?’, ‘Quem quer comprar?’. Para este dialogo, marcamos às seis da tarde: às seis e trinta e cinco tocavam a campainha da porta”.

Uma das figuras lendárias da folia carioca, rei dos concursos de fantasia, contou a ela que em vez de comprar um carro, gastava suas economias em fantasias e continuava andando de ônibus. Clarisse adorou conhecê-lo: “Confesso que esperava um Clóvis Bornay pernóstico, fútil, antipático. Para a minha agradável surpresa, encontrei um Bornay que fala com simplicidade e com amor de suas coisas usando a sinceridade quase ingênua de quem não tem porque ser atacado”.

Uma personagem que fez história e acabaria esquecida deu uma das melhores entrevistas: Yolanda Costa e Silva, casada com Artur da Costa e Silva:

“A primeira-dama do Brasil é uma senhora afável e de maneiras suaves — mas seu olhar é penetrante. Certamente ela sabe como escolher os seus auxiliares. Deve se tratar, também, de pessoa organizada, pois encontra tempo para ver seus netos e brincar com eles. Apesar de levemente tímida, não se faz de rogada: responde às perguntas com fluência e entusiasmo. Sua elegância é discreta, porém original. É com naturalidade que sorri, e sorri frequentemente. Enfim, Dona Yolanda Costa e Silva tem le physique du rôle”.

Ao leitor resta se deliciar com essas conversas, que trazem à tona nuances da própria Clarice, pouco exploradas em seus escritos.