Ruy Castro tem um dos mais saborosos textos das crônicas de jornais em atividade na imprensa brasileira — uma vez que Luís Fernando Veríssimo se afastou desse ofício faz algum tempo. Ruy, claro, é também um dos grandes biógrafos do Brasil, aquele que elevou o gênero a um patamar de profundidade e excelência que tem feito história, mas que continua insuperável.
Em seus projetos de contar vidas, ele bem poderia ter feito um livro sobre o maestro Tom Jobim, autor das obras-primas Chega de Saudade e Garota de Ipanema, em parceria com Vinicius de Moraes. Afinal, é o biógrafo definitivo do movimento que o consagrou, a bossa nova, no livro Chega de Saudade, de 1990.
Mas eis que ele acaba de lançar O ouvidor do Brasil – 99 vezes Tom Jobim, uma reunião de crônicas que vai deixar os fãs do maestro e os apreciadores de bons textos satisfeitos. O livro marca os 30 anos da morte do compositor.
Em entrevista exclusiva ao NeoFeed, ao ser perguntado sobre o que o leitor pode encontrar de surpresa neste volume, após tantos livros sobre a bossa nova, ele responde. “Depois dos grandes painéis, é como se agora eu estivesse vendo Tom por um microscópio — o lado menos visível dele, as preferências pessoais, os hábitos, as amizades, as manias e principalmente sua dedicação à causa do ambiente, antes que o Brasil fizesse disso uma causa.”
O autor diz que nunca pensou em escrever uma biografia de Tom ou mesmo chegou a começar porque, já tendo escrito Chega de saudade, teria de passar de novo por muitos dos trechos que tinha contado — “pelo mesmo motivo, agradeci e recusei vários pedidos das filhas do Vinicius para fazer uma biografia dele”. Além disso, “Tom não teve uma vida de altos e baixos — praticamente só teve altos, e isso inviabiliza uma biografia”.
No dia seguinte à morte dele, revela Ruy, uma editora americana ligou para Luiz Schwarcz, então dono da editora Companhia das Letras, e lhe pediu uma biografia de Tom escrita por Ruy, para ser entregue dali a seis meses.
“Eu disse ao Luiz que, tão rápido assim, pareceria uma coisa de abutre. Além disso, naqueles primeiros meses, talvez anos, Tom não teria um defeito no mundo para meus informantes. Ele concordou comigo.”
E qual teria sido o papel do maestro e compositor na bossa nova? O autor responde: “Acho que, sem João Gilberto, Tom teria chegado à bossa nova do mesmo jeito. Não seria como esta que conhecemos, mas seria sempre uma bossa nova. Da maneira como aconteceu, Tom, que já vinha naquele processo de modernização melódica e harmônica, acoplou-o à batida do violão por João Gilberto e aí saíram aquelas maravilhas.”
A antologia é dividida em quatro partes: “O ouvidor do Brasil”, “As boas histórias”, “Anos dourados” e “Vou te contar”. A primeira tem a ver com sua militância de ambientalista. Ruy justifica o título a partir de um verbete que definiu em um dicionário fictício, que talvez ainda venha a escrever um dia.
“Ouvidor. S. m. Do latim auditor, -oris; auditor, ouvinte. Aquele que ouve. Atento aos valores ambientais, urbanos, vegetais, animais, humanos e culturais, e de prontidão para defendê-los. Que ouve os sons do país, venham da floresta ou da cidade. Exemplo: Antonio Carlos Jobim”.
"Um homem em alerta"
Os textos escolhidos foram publicados originalmente entre 2007 e 2023, na sua coluna na página 2 da Folha de S. Paulo. Como o autor explica, todos tratam de Tom, o homem e o artista, e do mundo que girou tendo-o como centro. “Em alguns, a presença de Tom poderá parecer de passagem. Mas não é assim — tudo neste livro só aconteceu ou está aqui porque um dia ele existiu.”
Em 16 anos, a um ritmo de três e depois quatro textos por semana, Ruy produziu cerca de 3,5 mil crônicas para o jornal paulistano. Destas, recolhidas por sua assistente Flavia Leite, 120 falavam de Tom. Foram reduzidas a noventa, atualizadas, reescritas, dispostas em ordem mais temática do que cronológica e acrescidas de nove feitas exclusivamente para o livro.
Ruy afirma que possíveis ecos entre uma e outra significam apenas que elas se complementam e se completam. “Tom era muitos, mas o autor é um só.”
Em textos curtos, reuniu informações e histórias de bastidores, conta como Tom mudou a história da música brasileira com a bossa nova e suas canções, juntamente como João Gilberto, que influenciaram pelo menos duas gerações de compositores. E levou o gênero para o mundo, o que a maioria dos leitores deve saber.
O que ele traz é o artista humanizado, por vezes inesperado e desconhecido, que tem como fio condutor sua relação com o Brasil, sua preocupação quanto à preservação da natureza, quando esse assunto interessava a poucos. Claro que não podiam faltar fatos inéditos, histórias de bastidores, mitos, desmentidos e informações sobre os grandes personagens da cena musical nos anos 1950 e 1960.
Difícil escolher o que citar do livro aqui. Como esta apresentação: “Escrevi certa vez que, sempre que Tom Jobim abria o piano, o mundo melhorava. De seu piano saíam mares, rios, matas, serras, montanhas, peixes, aves, formando um corpo de beleza e de eternidade em forma de canção. Era como se seu teclado estivesse sujeito aos ventos e às marés.”
Na maior parte do tempo, escreve Ruy, Tom “era um homem em alerta por cada centímetro e cada habitante, bípede, quadrúpede ou multípede da Mata Atlântica. De seu posto de observação, ele via as cidades sucumbindo ao concreto, impermeabilizadas pelo asfalto, e as matas cortadas por estradas para a passagem de um bicho predador, com carapaça de divulgação metal e sangue de gasolina”.
Tom não se queixava do Brasil, lembrou o cronista. “É o único país do mundo com nome de árvore. E não tem mais essa árvore”. Queixava-se do brasileiro, “que acorda todo dia para destruir o Brasil”. E por ter tão pouca autoestima: “O Japão é um país paupérrimo, com vocação para a riqueza. Nós somos um país riquíssimo, com vocação para a pobreza”.
O músico era um poeta-filósofo, sem dúvida. E ele se dizia tudo, menos saudosista: “De que adianta eu sentir saudade do Brasil se ninguém mais sente?”. Sem saber, sem querer e sem poder evitar, diz Ruy, Tom era um homem em permanente estado de assembleia com o Brasil.
Assim, o cronista também o descreve: “Tom foi, antes de muitos, um ouvidor do Brasil, um ombudsman por conta própria. Ninguém o contratou ou escalou para isso — ao contrário, era um voluntário da pátria.” Ruy acredita que o maestro não morreu, “e a qualquer hora dessas vamos cruzar com ele, aflito, à sombra de alguma árvore que já não está mais lá”.
Doce balanço
Ruy localizou a primeira vez que seu nome apareceu na imprensa, quando tinha sete anos e seu pai lhe dedicou um poema nas páginas da revista O Malho.
E não faltam histórias maravilhosas de bastidores, como a gravação com Frank Sinatra, que pediu a Tom para acompanhá-lo ao violão em dez faixas, para ira de João Gilberto, que explodiu contra o amigo porque não o convidou para participar do disco.
Esse disco, de 1967, aliás, rendeu outra crônica em que Ruy conta que o comprou num leilão em edição americana e autografado pelo músico. Há um texto com a lista dos que abandonaram o barquinho da bossa. Até João Gilberto, que dizia cantar sambas. Menos Tom.
Não faltam também desmentidos, como a falsa história de que Garota de Ipanema foi feita em minutos, depois de ele e Vinicius viram Helô Pinheiro passar, requebrando, cheia de graça, rumo à praia. Eles realmente precisaram de tempo para estruturar os versos de algo tão mágico e que se tornaria uma das canções do século 20.
Cada frase que Ruy Castro dedicou a Tom Jobim em suas crônicas parece versos e melodias em perfeita sintonia. Tudo é bem redondo, enxuto, com arremates arrebatadores no final. Foram escritos com o coração, sem dúvida, como uma declaração de amor sem limites.